Seja cuidadoso na vida

“O Rav Yossef Dov Soloveitchik zt”l (Bielorrússia, 1820 – 1892), mais conhecido como “Beis Halevi”, era um grande sábio de Torá e o juiz da cidade onde morava. Certo dia ele foi para a sinagoga estudar com seu filho pequeno. Era um dia muito quente de verão e o Rav Yossef Dov retirou seu terno e seu chapéu, sentou-se e em poucos instantes estava completamente imerso no estudo de Torá com seu filho. De repente, entrou na sinagoga um dos açougueiros da cidade e começou a gritar e a ofender o Rav Yossef Dov. Entre as ofensas, o açougueiro começou a acusar o rabino de ser desonesto e ter desviado intencionalmente um julgamento. No dia anterior, este açougueiro havia ido ao Beit Din (Tribunal Rabínico) do Rav Yossef Dov para uma disputa com outro açougueiro. O Rav Yossef Dov, de acordo com os dados que foram trazidos pelas duas partes, deu a razão ao outro açougueiro. O homem ficou muito irritado, pois ele tinha certeza absoluta de que estava com a razão. Por isso, começou a acusar o Rav Yossef Dov de ter sido subornado pelo outro açougueiro com uma enorme quantia de dinheiro.

Quando o Rav Yossef Dov escutou as acusações que estavam sendo proferidas contra ele, levantou-se, vestiu seu terno e seu chapéu e ficou de pé, olhando para o chão, completamente em silêncio. No momento em que o açougueiro viu que o rabino havia ficado de pé, começou a ofendê-lo ainda mais, falando palavras de desprezo e proferindo maldições, além de chamá-lo de ladrão. O açougueiro chegou inclusive a levantar a mão, ameaçando agredir o rabino. Mas enquanto o açougueiro despejava suas ofensas e maldições, o Rav Yossef Dov se controlava e escutava as humilhações em completo silêncio. Quando finalmente o açougueiro virou-se para ir embora, o Rav Yossef Dov caminhou lentamente na direção dele e da sua boca saíram as seguintes palavras: “Eu te perdoo, eu te perdoo, não quero que você seja castigado por causa dos meus sofrimentos”.

No dia seguinte, o açougueiro estava caminhando por uma das ruas da cidade, levando para o abatedouro alguns bois que havia acabado de comprar no mercado. De repente, um dos bois começou a se comportar de maneira estranha, como se tivesse enlouquecido, e se jogou sobre o açougueiro, matando-o imediatamente. Quando o Rav Yossef Dov escutou a notícia da morte do açougueiro, ele ficou arrasado, imerso em uma terrível tristeza, e repetiu algumas vezes ao seu filho: “Eu suspeito que, por ter ficado chateado com este homem, eu causei a morte dele”. Seu filho respondeu que ele não devia pegar para si a culpa, pois havia perdoado o homem. O Rav Yossef Dov não queria acreditar nas palavras do seu filho, achando que ele estava inventado apenas para acalmá-lo. Quando seu filho começou a descrever as palavras que ele havia utilizado para perdoar o açougueiro e o lugar exato da sinagoga onde ele estava quando disse aquelas palavras, somente então ele se acalmou um pouco. Apesar disso, ficou extremamente triste com o ocorrido.

O Rav Yossef Dov participou do enterro do açougueiro e chorou amargamente sobre seu caixão. Ele recebeu sobre si falar o “Kadish” pelo falecido durante os 11 meses de luto e também estudar diariamente “Mishnaiót” em elevação da alma dele. Além disso, ano após ano, até o último ano de sua vida, o Rav Yossef Dov jejuava, falava Kadish e estudava Mishnaiót no “Yortzait” (dia do falecimento) do açougueiro, com as mesmas rigorosidades que fazia no dia do Yortzait do seu próprio pai.”

Mesmo após ter sido duramente ofendido e humilhado, o Rav Yossef Dov não se consolava pela remota possibilidade de que ele havia causado a morte do açougueiro. Assim vemos o temor a D’us verdadeiro de uma pessoa, através dos cuidados e da preocupação que ela tem com as consequências dos seus atos e pensamentos.

Nesta semana começamos o terceiro livro da Torá, Vayikrá, que nos ensina sobre os Serviços espirituais feitos no Mishkan (Templo Móvel). E a Parashá desta semana, Vayikrá (literalmente “E chamou”), traz detalhes de um dos principais Serviços: os Korbanót (sacrifícios) oferecidos no Mizbeach (altar). O nome “Korban” vem de “Karóv”, que significa “perto”, demonstrando que a principal função dos Korbanót era nos aproximar de D’us. Em especial esta aproximação era necessária quando uma pessoa transgredia, pois toda transgressão causa um afastamento espiritual. O Korban vinha consertar o estrago espiritual e reaproximar a pessoa de D’us.

Um dos Korbanót mais interessantes trazidos nesta Parashá é o “Asham Talui”, oferecido por alguém que tinha dúvidas se havia cometido ou não uma transgressão, como está escrito: “Se a pessoa pecar e cometer uma das Mitzvót de D’us que não podem ser feitas, mas ele não souber e se tornar culpado, ele carregará sua transgressão” (Shemot 5:17). Este versículo refere-se, por exemplo, ao caso de alguém que está comendo tranquilamente sua refeição, seguro de que está consumindo apenas alimentos Kasher, como “Shuman” (um tipo de gordura permitida). Porém, depois de terminar sua refeição, surge uma dúvida se aquela gordura que ele comeu era realmente “Shuman” ou se era “Chelev”, uma gordura cujo consumo é proibido pela Torá. É justamente neste caso de dúvida que a Torá obriga a pessoa a trazer o Korban “Asham Talui”, que literalmente significa “culpa pendente”. Uma das funções deste Korban é proteger a pessoa de sofrimentos de expiação que poderiam vir sobre ela caso tenha realmente cometido a transgressão.

Porém, por que viriam sofrimentos sobre a pessoa? Mesmo que tenha comido o “Chelev”, o versículo mesmo diz de forma explícita que trata-se de algo completamente sem intenção, sem o desejo de transgredir. Durante a refeição a pessoa estava tranquila e segura de que estava comendo algo permitido, a dúvida só surgiu depois. Então por que o Korban precisava ser trazido para proteger o transgressor de um possível castigo Celestial?

Explica o Rav Yechezkel Avramsky zt”l (Bielorrússia, 1886 – Israel, 1976) que o ser humano precisa estar sempre preocupado com suas responsabilidades na vida e com as consequências físicas e espirituais de seus atos. O erro expiado através do Korban “Asham Talui” é o fato da pessoa não ter sido suficientemente rigorosa com seus atos, a ponto de ter comido algo que era possivelmente uma grande transgressão da Torá sem ao menos ter suspeitado disso. Se tivesse sido mais cuidadosa, se tivesse se certificado de que realmente o que estava consumindo era Kasher, não teria nem se aproximado da transgressão. Por isso, este desleixo tem consequências espirituais negativas e poderia causar com que sofrimentos de expiação viessem sobre aquele que comeu algo proibido, mesmo que sem intenção.

Nos ensina o Talmud (Kidushin 81b) que quando Rabi Akiva chegava a este versículo da Torá, “mas ele não souber e se tornar culpado, ele carregará sua transgressão”, ele chorava e dizia: “Se é tão rigoroso quando uma pessoa tem intenção de comer “Shuman” e acaba sem intenção comendo “Chelev”, a ponto de a Torá afirmar que ele “carregará sua transgressão”, quanto mais e mais a Torá é rigorosa com aquele que tem a intenção de transgredir e comer “Chelev”. O choro do Rabi Akiva nos ensina a refletir sobre o quanto devemos nos preocupar com nossos atos, lembrando que tudo o que fazemos tem consequências.

Este conceito também é ensinado em relação às consequências físicas dos nossos atos. O Talmud (Baba Kama 26a) afirma que “Adam Muad Leolam”, isto é, o ser humano é responsável por seus atos e é considerado como se estivesse sempre “pré-advertido” em relação às possíveis consequências negativas de seus atos. Se uma pessoa com uma mochila nas costas entra em uma loja de cristais e, ao virar-se de forma descuidada, derruba uma prateleira inteira, quebrando vários cristais caros, ela está obrigada a pagar pelos danos causados. Mas por que, se foi um ato sem intenção, um mero acidente? Pois de acordo com o Talmud, desde o Har Sinai D’us já nos avisou: “Quebrou, pagou”. O ser humano tem que ser extremamente cuidadoso com cada um dos seus atos. Por exemplo, quando estamos dirigindo, devemos lembrar que o carro é uma arma letal, pronta a causar, a qualquer instante, danos irreversíveis. Um veículo, pesando mais de uma tonelada e viajando a 60 km/h, tem uma força destruidora imensa. Passar um sinal vermelho por estar com pressa é o mesmo do que dar um tiro para cima sem se preocupar em quem vai cair. Uma pessoa que matou de forma não intencional é chamada pela Torá de “Rotzeach”, que significa “assassino”. Apesar de ter sido “sem querer”, a pessoa é responsável pelas consequências de seus atos. Por isso, precisamos sempre fazer tudo de maneira bem pensada e calculada.

O Talmud (Baba Kama 26a) chega ao ponto de afirmar que uma pessoa é responsável pelas consequências negativas de seus atos até mesmo se estiver dormindo. Por exemplo, se uma pessoa deitou-se ao lado de um vaso caríssimo e, enquanto estava dormindo, rolou na cama e quebrou o vaso, ela está obrigada a pagar. Por que? Pois antes de se deitar ela deveria ter levado em consideração a possibilidade de quebrar o vaso. Em outras palavras, em termos das consequências negativas que um ser humano pode causar através de seus atos, não existe o conceito de “foi sem querer”. D’us nos deu um intelecto muito poderoso e Ele espera que o utilizemos também para evitar causar danos aos outros e a nós mesmos.

Se isto é verdade em relação aos atos com consequências materiais, muito mais devemos ser cuidadosos com os nossos atos que têm consequências espirituais. Nunca podemos fazer nada na vida sem pensar nas futuras consequências. Qualquer ato impensado e qualquer atitude sem a devida seriedade pode ter consequências espirituais muito negativas. O Korban “Asham Talui”, oferecido pela simples possibilidade da pessoa ter cometido uma transgressão, é um lembrete de como as pessoas devem ser rigorosas e cuidadosas com seus atos. Somente com responsabilidade e seriedade podemos viver uma vida na qual estaremos livres de transgressões e de possíveis danos, a nós mesmos e às outras pessoas.

SHABAT SHALOM

R’ Efraim Birbojm

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