Parashat Bechucotai

Mudando através da Torá

Reb Pinchas era um Talmid Chacham (estudioso de Torá), e desde muito jovem já havia terminado todos os Tratados do Talmud (Torá Oral). Certo dia, chegaram aos seus ouvidos notícias sobre o Maguid de Mezeritch e seus incríveis ensinamentos. O Reb Pinchas se interessou em saber se o Maguid teria algo a acrescentar aos seus conhecimentos. Decidiu visitar o Maguid e preparou uma difícil questão talmúdica para testar sua erudição. Porém, após esperar horas na fila para falar com o Maguid, quando finalmente chegou a sua vez, não conseguiu nem abrir a boca. Assim que entrou na sala, o Maguid imediatamente lhe disse:
 
– Sugiro que você procure meu discípulo, o Reb Zusia. Certamente isso lhe trará muitos benefícios.
 
Reb Pinchas ficou profundamente decepcionado, pois aquela não era a experiência que ele havia imaginado. Mas mesmo assim decidiu procurar quem era o Reb Zusia. Quando chegou à casa dele, percebeu que o Reb Zusia não se parecia muito com um erudito de Torá. Partes do dia ele não estudava, apenas se sentava para recitar Tehilim (Salmos). Em um primeiro momento, o Reb Pinchas chegou a desprezar o Reb Zusia. Quando pediu a ele para que lhe ensinasse Torá, o Reb Zusia respondeu amavelmente que era incapaz de ensinar Torá para alguém tão erudito. No entanto, Reb Zusia tinha uma pergunta de Torá que talvez o Reb Pinchas pudesse ajudar a esclarecer. Pegou um volume do Talmud e, abrindo-o numa determinada página (Tratado de Brachót 47b), leu em voz alta: “Rav Huna disse: 'Nove podem combinar com um Aron Hakodesh (Arca Sagrada)'”. O Talmud estava ensinando que, caso houvesse apenas nove judeus e fosse necessário um Minian (grupo de 10 judeus), o Aron Hakodesh poderia ser contado como a décima pessoa. O Talmud então pergunta: “Porém, o Aron Hakodesh é uma pessoa?” E, baseado neste questionamento, o Talmud reformula o ensinamento de uma maneira completamente diferente.
 
– Mas o Talmud não sabia, na hipótese levantada, que um Aron Hakodesh não é uma pessoa? – perguntou o Reb Zusia – Então o que o Talmud está querendo nos ensinar?”
 
Reb Pinchas nunca havia escutado uma pergunta tão estranha. Virou-se para ir embora, mas foi chamado de volta:
 
– Perdoe-me, mas acho que o Talmud está nos ensinando uma lição muito importante – disse o Reb Zusia – Um judeu não deve pensar que apenas por ser uma “Arca Sagrada ambulante”, repleta de “Rolos da Torá”, isso automaticamente faz dele uma “pessoa”. Em outras palavras, o Talmud está nos ensinando que é possível que a pessoa seja um grande erudito e, mesmo assim, ainda não é garantido que tenha se tornado uma “pessoa”.
 
– É isso que aprendemos aqui em Mezeritch – concluiu o Reb Zusia – a como usar a Torá para se tornar um “Mentsh” (gente). Não apenas a pessoa deve estudar Torá, mas a Torá deve ensiná-lo a ser uma “pessoa”.
 
Reb Pinchas se envergonhou por sua arrogância. Compreendeu que, apesar de toda a Torá que conhecia, ainda faltava muito para se tornar “gente” de verdade.

Na Parashat desta semana, Bechukotai (que literalmente significa “Meus decretos”), a Torá apresenta as condições necessárias para que D'us mande ao povo judeu paz e abundância: “Se vocês andarem com Meus decretos, e guardarem Meus mandamentos e cumpri-los” (Vayikrá 26:3). Isto significa que, quando cumprimos nossas obrigações e fazemos nossa parte, D'us faz a parte Dele e vivemos com tranquilidade. Na continuação da Parashat, a Torá traz as terríveis consequências de quando nos afastamos dos caminhos de D'us e abandonamos Suas Mitzvót.
 
Porém, deste versículo inicial da Parashat surge um questionamento: por que a Torá repete tantas vezes o mesmo conceito, dizendo que devemos andar com os decretos, guardar os mandamentos e cumprir os mandamentos? Estas três expressões não significam a mesma coisa? Explica Rashi que a primeira parte do versículo, “andar nos Meus decretos”, não se refere ao cumprimento dos mandamentos, e sim à “amelut” no estudo da Torá. “Amelut” é mais do que simplesmente estudar Torá. “Amelut” é um nível de esforço e comprometimento muito maior, que envolve constância e dedicação. Já a segunda parte do versículo, “guardarem Meus mandamentos”, está conectada com a primeira parte e refere-se à “amelut” na Torá com o propósito de guardar os seus mandamentos. A terceira parte, “e cumpri-los”, refere-se ao cumprimento das Mitzvót na prática. Desta explicação de Rashi aprendemos que existem dois tipos de “amelut” na Torá: aquele que se esforça no estudo apenas pelo estudo, e aquele que se esforça no estudo para poder cumprir as Mitzvót.
 
Mas esta explicação de Rashi traz uma grande dificuldade de entendimento, pois implica que existe o conceito de “amelut” na Torá sem a intenção de realmente cumpri-la. Isto não parece ter muita lógica, pois o próprio conceito de “amelut” já sugere uma profunda apreciação da importância da Torá, ao ponto da pessoa estar disposta a um comprometimento e uma constância exemplares em busca do entendimento das palavras de D'us expressas na Torá. Podemos entender que alguém que estuda sem constância e sem seriedade pode estudar Torá sem a intenção de cumpri-la, pois sua forma descompromissada de estudo já demonstra o quanto a pessoa não entende o verdadeiro valor da Torá. Mas como entender alguém que verdadeiramente se esforça com constância e que estuda a Torá com “amelut” pode, ao mesmo tempo, não ter intenção de cumpri-la?
 
Uma pergunta semelhante surge quando analisamos um ensinamento que discute diferentes motivações pelas quais alguém estuda Torá: “Aquele que estuda com o intuito de ensinar, permitem que ele estude e ensine. E aquele que estuda com o intuito de cumprir, permitem que ele estude e ensine, guarde e cumpra” (Pirkei Avót 4:5). Os comentaristas explicam que “aquele que estuda com o intuito de cumprir” refere-se à pessoa que realmente deseja manter a Torá. Isto implica que “aquele que estuda com o intuito de ensinar” refere-se à pessoa que não tem intenção de cumprir as Mitzvót. Mas se este é realmente o caso, então por que D'us dá a esta pessoa o mérito de poder estudar e ensinar?
 
Responde o Rav Yehonasan Gefen que o conceito de “amelut na Torá sem a intenção de cumpri-la” não se refere a alguém que não tem interesse de cumprir as Mitzvót, e sim a alguém que não reconhece que a Torá que ele estuda deve mudá-lo internamente, em sua essência. Esta pessoa falha em fazer uma conexão entre seu estudo e seu serviço Divino diário. Ele certamente aprecia que o estudo da Torá é uma grande Mitzvá, mas não dá o próximo passo, que é perceber que a Torá que ele estuda deve influenciar e transformar seu comportamento em todos os aspectos da vida. Quando o Pirkei Avót diz sobre aquele que estudou para ensinar, trata-se certamente de alguém que também quer cumprir as Mitzvót, pois se não fosse assim, não mereceria o mérito de estudar e ensinar. A falha da pessoa é não estudar com o propósito de mudar a si mesma como ser humano e, por isso, a Torá acaba não tendo influência sobre suas ações cotidianas.
 
De acordo com o Rav Yehuda Arie Leib Alter zt”l (Polônia, 1847 – Alemanha, 1905), mais conhecido como Sfat Emet, é isto que pedimos todos os dias quando recitamos pela manhã o “Birkat HaTorá”, a Brachá que pronunciamos uma vez por dia antes de estudarmos Torá. Nesta Brachá dizemos “D'us, adoce por favor as palavras da Sua Torá em nossas bocas”. A palavra “adoce”, em hebraico “Haarev”, tem a mesma raiz da palavra “Erev”, que significa “mistura”. O que nós pedimos nesta Brachá é que a Torá, além de ser doce, também se misture à nossa essência e ao nosso ser, e não permaneça apenas como um conhecimento superficial.
 
Infelizmente não é incomum que as pessoas não consigam conectar o que elas estudam com suas vidas diárias. É por isso que nossos sábios sempre colocaram uma grande ênfase no fato que a Torá deve penetrar em nossa essência e afetar de maneira positiva nosso comportamento cotidiano. Por exemplo, o Rav Moshe Feinstein zt”l (Lituânia, 1895 – EUA, 1986) explicou que em muitos lugares o primeiro Tratado do Talmud estudado pelas crianças é “Baba Kama”, que trata das leis de danos. Um dos motivos desta escolha é para inserir na criança, mesmo nas fases iniciais de sua vida, a sensibilidade com a propriedade dos outros. Isto significa que o propósito do estudo das crianças é muito mais abrangente do que simplesmente dar a elas conhecimento técnico, e engloba também transformá-las em pessoas mais pensantes, profundas e sensíveis com o próximo.
 
Este conceito, de permitir que a Torá mude a nós mesmos, não se limita apenas ao estudo de leis práticas. Nas Yeshivót (centros de estudo de Torá), por exemplo, na maior parte do tempo os estudantes estão se esforçando no estudo do Talmud, que não necessariamente foca em aprender o que fazer em situações práticas do cotidiano. Muitos ensinamentos do Talmud se referem a uma época em que ainda existia o Beit Hamikdash, e que não se aplicam mais atualmente. Mesmo assim, até o tipo de estudo que não pode ser aplicado na prática, se for abordado da forma correta, tem o poder de transformar a pessoa em um ser humano mais refinado. Devemos nos esforçar para, toda vez que aprendemos um novo ensinamento de Torá, refletir sobre o que é possível aprender em relação à forma como D'us olha o mundo, e tentar integrar esta atitude em nossa própria perspectiva de vida.
 
Nossa Parashat ensina o quanto é importante garantir que a Torá que nós trazemos ao nosso intelecto também alcance nossos corações, e isto deve transparecer em nossos atos e no nosso comportamento cotidiano. O primeiro estágio para termos sucesso nesta tarefa é simplesmente reconhecer que a Torá que estudamos deve nos transformar em pessoas diferentes, e o segundo estágio é parar para refletir e perceber se isto está ocorrendo na prática. Como aquele estudante de Torá que, após estudar dia e noite, terminou todos os Tratados do Talmud. Ele então comentou com o seu rabino: “Já passei por todo o Talmud”. O rabino respondeu: “O que eu quero saber não é se você passou por todo o Talmud, e sim se todo o Talmud passou por você”.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm

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