A espiritualidade dos outros

“Certa vez, um rabino que dedicava sua vida a tentar aproximar da Torá os judeus que estavam mais afastados foi duramente questionado por outro judeu observante:

– Você não acha que é uma grande tolice se expor tanto às influências externas? Ao invés de gastar seu tempo e sua energia para ensinar Torá aos judeus afastados, será que você não deveria dedicar-se completamente ao seu próprio crescimento espiritual e ao fortalecimento dos seus filhos?

– Imagine uma casa pegando fogo – continuou o homem, visivelmente exaltado – Somente parte da mobília pode ser salva. Alguns móveis estão um pouco queimados, enquanto outros estão em perfeito estado. Me diga, você salvaria os móveis queimados? Certamente que não! Você trataria de salvar apenas os móveis em perfeito estado, e deixaria os móveis queimados para trás. Então por que você não faz isso? Será que não é mais importante salvar você e seus filhos, ao invés de dedicar-se aos judeus afastados?

– Caro amigo – respondeu com carinho o rabino – entendo sua preocupação e achei excelente o exemplo que você utilizou. Certamente estamos em uma geração na qual os judeus se encontram cercados pelo fogo da assimilação, e nosso judaísmo corre um sério risco de se extinguir. Porém, o que você falou se aplicaria somente em relação aos móveis que estão em uma casa pegando fogo. Mas o que você faria em relação às pessoas que estão presas dentro da casa? Com um pouco de esforço podemos ajudar aqueles que estão saudáveis, pois eles podem correr e salvar suas próprias vidas. Mas um grande esforço é necessário para salvar a vida daqueles que estão feridos, pois eles não conseguem sair sozinhos. Você os deixaria para trás?”

Obviamente temos uma enorme responsabilidade de nos fortalecer e educar nossos filhos dentro dos valores judaicos, e para isso precisamos dedicar muito tempo e energia. Mas isto não nos isenta de nos preocuparmos com os outros judeus, principalmente aqueles que estão mais afastados da Torá.


Na Parashá desta semana, Ki Tavô, Moshé comandou o povo judeu a se reunir em duas montanhas, Guerizin e Eval, para uma nova aceitação da Torá logo que entrassem na Terra de Israel. Doze mandamentos da Torá deveriam ser enumerados, e as pessoas deveriam reconhecer publicamente que aqueles que cumprissem os mandamentos receberiam Brachót (bênçãos), enquanto maldições atingiriam aqueles que os desprezassem. Mas observando com atenção estes mandamentos, algo nos chama a atenção. Cada um deles discute algum ato específico, com exceção do último mandamento, que parece ser mais genérico: ” 'Maldito aquele que não mantém as palavras desta Torá, para cumpri-las'. E todo o povo deverá dizer 'Amém' ” (Devarim 27:26). O que significam estas palavras tão vagas?

Explica o Ramban (Nachmânides) (Espanha, 1194 – Israel, 1270) que esta maldição se aplica àquele que estuda, ensina, guarda e cumpre os mandamentos da Torá, mas que apesar de ter a possibilidade de aproximar judeus afastados e fortalecer a Torá deles, não faz nada a respeito. Isto quer dizer que esta maldição se aplica até mesmo para aqueles que são completamente justos e retos em seus atos, mas que não se esforçam para fortalecer os conhecimentos de Torá daqueles que não a cumprem. Todos aqueles que têm o poder de influenciar positivamente os outros e não o fazem, recebem sobre si a maldição proferida no Monte Eval, mas aqueles que se esforçam e tentam influenciar os outros de maneira positiva recebem a Brachá proferida no Monte Guerizim.

Temos uma inclinação natural de pensar que não se importar com a espiritualidade dos outros não é algo tão grave. Porém, observando as transgressões que são enumeradas nas outras maldições, podemos começar a ter uma ideia mais clara da gravidade de deixar de aproximar aqueles que estão mais afastados. Por exemplo, a Torá traz as proibições de fazer imagens esculpidas (idolatria), de desprezar os pais, de se envolver em relações imorais e de ferir o companheiro de maneira secreta (que se refere ao Lashon Hará, isso é, denegrir o próximo pelas costas, de maneira covarde). Se o fato de deixar de se importar com a espiritualidade dos outros foi listado junto com transgressões tão graves, isto quer dizer que certamente também esta negligência é considerada grave aos olhos de D'us.

O Rav Naftali Tzvi Yehuda Berlin (Rússia, 1816 – Polônia, 1893), mais conhecido como Netziv, viveu em uma geração na qual já havia um grande fluxo de judeus que abandonavam a Torá e as Mitzvót para se conectarem a outros tipos de ideologia. Na época, muitos judeus observantes acreditavam que o ideal era se isolar de qualquer tipo de influência negativa e continuar com seu próprio trabalho de crescimento espiritual. Mas o Netziv se levantou fortemente contra esta ideia, pois acreditava que enquanto o mundo estava sendo espiritualmente destruído, não era hora de focar na sua própria espiritualidade. Para incentivar as pessoas de sua geração, ele utilizava como exemplo a história do Rei Yoshiahu, que nasceu em uma geração completamente sem conhecimentos de Torá. O Rei Yoshiahu assumiu o trono com 8 anos, após a morte de seu pai, e decidiu fazer uma reforma no Beit Hamikdash (Templo Sagrado). No meio das obras, Chilkiahu, um dos Cohanim (sacerdotes), encontrou um Sefer Torá escondido. Eles viram que o Sefer Torá, ao invés de estar enrolado até o começo, na Parashá Bereshit, estava aberto no meio do Sefer, justamente na parte onde está o versículo “Maldito é aquele que não mantém as palavras desta Torá”. Quando o Rei Yoshiahu escutou estas palavras, ele imediatamente rasgou suas roupas e disse: “Está sobre mim a responsabilidade de manter a Torá”. Após muitos esforços e dedicação, ele realmente teve sucesso em trazer de volta o povo judeu ao estudo e ao cumprimento da Torá e das Mitzvót.

Há um versículo interessante na história do Rei Yoshiahu. Após encontrar o Sefer Torá, ele falou para os Cohanim e Leviim: “Agora vão e sirvam Hashem, seu D'us, e o Seu povo, Israel” (Divrei Haiamim II 35:3). Mas o que significa servir a D'us e ao Seu povo? Explica o Netziv que após os terríveis reinados de Menashé e Amon, reis que vieram antes de Yoshiahu e que levaram o povo judeu aos caminhos da idolatria, os únicos que haviam conseguido manter um nível espiritual elevado eram os Cohanim e os Leviim. Por isto, eles acabaram se refugiando em seu próprio mundo, para evitar o perigo da assimilação que os rondava. Eles dedicavam-se ao seu próprio crescimento espiritual e à sua conexão com D'us, mas negligenciaram a espiritualidade do resto do povo. Yoshiahu quis dar a eles um forte recado após encontrar o Sefer Torá. Ele os estimulou a mudar de comportamento e, a partir daquele momento, dedicar suas energias para espalhar a Torá entre aqueles que estavam tão afastados e desconectados. E o Rei Yoashiahu ressaltou que, ao servir o povo judeu, ao mesmo tempo eles estariam servindo a D'us, pois certamente esta era a vontade Dele naquele momento.

Se aquele que não se importa com a espiritualidade dos outros entra na maldição contida nesta Parashá, o contrário também é válido, e todo aquele que se esforça para influenciar positivamente os outros para que aumentem sua observância da Torá e das Mitzvót recebe um grande louvor de D'us. Um exemplo de dedicação ao próximo aprendemos com o Rav Isroel Meir HaCohen (Bielorússia, 1838 – Polônia, 1933), mais conhecido como Chafetz Chaim. Ele não se preocupava apenas com o seu próprio serviço Divino, ele estava sempre preocupado com a espiritualidade dos outros. Certa vez, quando estava viajando pela Letônia, o Chafetz Chaim chegou a uma cidade chamada Riga. Lá havia uma grande comunidade judaica, mas completamente assimilada, que não cumpria as Mitzvót da Torá. Durante sua estadia de três semanas, o Chafetz Chaim fez tantos esforços que conseguiu convencer 300 judeus a não abrirem suas lojas no Shabat. Em outro momento ele escutou que alguns soldados judeus, por estarem no exército, comiam pão em Pessach. Ele ficou tão triste que criou um “Fundo para cozinha Kasher”, para fornecer comida Kasher àqueles que iam para a guerra, e pessoalmente recolheu dinheiro para isso. Ele também entrava em contato pessoal com os soldados, para tentar influenciá-los a cumprir as Mitzvót. E quando grupos de soldados passavam pela sua cidade, Radin, durante o verão, o Chafetz Chaim carinhosamente os convidava para um verdadeiro banquete em sua casa, recebendo-os com amor paternal e encorajando-os a crescer espiritualmente.

Existem várias maneiras através das quais podemos ajudar outros judeus a estarem mais conectados com sua espiritualidade. Pode ser dando aulas, estabelecendo novos centros de estudo de Torá, ajudando a manter os centros de Torá já existentes ou simplesmente se aproximando das pessoas mais afastadas da Torá e convidando-as, por exemplo, para uma deliciosa refeição de Shabat.

Se o Rei Yoshiahu e o Netziv já ficavam tão preocupados em suas gerações, maior ainda é a nossa responsabilidade, em uma geração na qual os números da assimilação chegam a mais de 70% em vários lugares do mundo. Apesar de não nos sentirmos preparados, devemos saber que não estamos isentos de participar nesta importante missão. Se acreditarmos no nosso potencial e, mais ainda, assumirmos a nossa responsabilidade na continuidade da Torá, certamente D'us nos ajudará e teremos muito sucesso em trazer de volta aqueles que estão tão afastados de sua espiritualidade. Além de ajudar outras pessoas, estaremos garantindo mais Brachót para as nossas vidas.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm

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