Parashat Ekev

Boas intenções e maus atos

Apenas três dias antes da libertação do Campo de Concentração de Dachau, as tropas nazistas da SS, vendo o rápido avanço dos aliados, levaram cerca de 7.000 prisioneiros, em sua maioria judeus, em uma marcha em direção ao sul, para a cidade de Tegernsee. Durante a caminhada, que durou seis dias, aqueles que não conseguiram manter o ritmo foram executados a tiros, e muitos outros morreram de fome, exposição às condições climáticas extremas ou exaustão. Esta caminhada ficou conhecida como “a marcha da morte”. As forças aliadas libertaram o Campo de Concentração de Dachau em 29 de abril de 1945. No início de maio daquele mesmo ano, tropas norte-americanas libertaram os prisioneiros sobreviventes da marcha da morte.

Abraham Lewent, um judeu polonês, foi um dos sobreviventes da marcha da morte e relatou ao mundo os horrores da guerra e a crueldade dos nazistas. Para ele, um episódio que nunca saiu de sua memória foi quando os prisioneiros foram libertados pelos soldados americanos. Abraham Lewent estava deitado, junto com uma centena de pessoas, muitas mortas de fome e de frio. Os soldados americanos colocaram os sobreviventes em jipes e os levaram para hospitais ou prontos-socorros improvisados. Na ânsia de ajudar, vendo os judeus em estado lastimável, eles distribuíram generosamente água e pacotes de comida. Abraham Lewent conta que, quando recebeu seu pacote de comida, um rapaz judeu que estava perto, que era médico, apesar de estar quase morto, gritou:

– Não coma nada! Se você comer qualquer coisa você vai morrer. A única coisa você deve fazer é pegar um pouco de açúcar, colocar na boca e chupar. Jogue o resto fora. E se você quiser guardar, tudo bem, mas não coma nada. Não coloque o leite na boca, não morda o chocolate e não coma a carne!

Aquele rapaz realmente estava certo. O que parecia um ato de bondade e caridade do exército americano transformou-se em uma terrível tragédia. Os judeus, após anos sem comer uma refeição, começaram a desesperadamente comer tudo o que havia naqueles pacotes de comida. Estavam com tanta fome que nem se preocuparam com as consequências. Infelizmente, o mesmo fenômeno se repetiu na libertação de vários Campos de Concentração, causando a morte de milhares de judeus por colapso do estômago ou diarreia, porque seus estômagos não estavam mais acostumados com comida”.

Não é suficiente apenas termos boas intenções na vida. Precisamos sempre checar se nossos aparentes bons atos não estão trazendo danos ou consequências negativas, para outras pessoas e para nós mesmos.
 


Nesta semana lemos a Parashá Ekev, que começa listando uma série de Brachót (bênçãos) que recaem sobre nós quando cuidamos do cumprimento das Mitzvót. E no final da Parashá novamente D'us condiciona o sucesso da conquista da terra de Israel ao cuidado com as Mitzvót, como está escrito: “E se vocês cuidarem de toda esta Mitzvá que Eu comando para vocês, e a cumprirem, e amarem a Hashem, teu D'us, e andarem em todos os Seus caminhos, e se apegarem a Ele, então Hashem expulsará todas estas nações diante de vocês” (Devarim 11:22,23). Mas o que significa “andar nos caminhos de D'us”? Explica Rashi (França, 1040 – 1105), comentarista da Torá, que da mesma forma que Ele é misericordioso, nós também devemos ser misericordiosos. Da mesma forma que Ele faz bondades, nós também devemos fazer bondades. Quando nos comportamos como D'us, estamos andando nos caminhos Dele.

Ao escutar a explicação de Rashi, pode parecer que é fácil andar nos caminhos de D'us. Mas explica o Rav Yaacov Naiman, em seu livro Darkei Mussar, que não é tão simples assim. Muitas vezes a pessoa pode fazer um ato pensando que está fazendo uma Mitzvá, mas na verdade está fazendo uma grande transgressão. Por exemplo, quando alguém faz uma Mitzvá e, por causa deste ato, acaba causando um dano ou um sofrimento ao seu companheiro, isto é chamado de “Mitzvá Habá BeAveirá” (Mitzvá que vem através de uma transgressão”. Quando fazemos uma Mitzvá, nossa intenção é agradar a D'us, quem nos comandou fazer aquele ato. E certamente cumprir uma Mitzvá que causa danos ou sofrimentos aos outros não agrada a D'us. Porém, na maioria das vezes, fazemos isto sem perceber e sem nenhuma intenção de causar dano aos outros. Será que mesmo assim é grave transgredir por desconhecimento?

A resposta está na Parashá da semana passada, Vaetchanan. Há na Parashá um versículo que fala sobre a importância de cumprir as Mitzvót da Torá: “E cuidem e cumpram, pois ela é sua sabedoria e seu entendimento aos olhos dos povos… E dirão (os outros povos): certamente um povo sábio e entendido é esta grande nação” (Devarim 4:6). Rashi conecta este versículo com outro versículo escrito um pouco depois: “Somente cuide muito para você, e cuide muito para sua alma, para que você não se esqueça” (Devarim 4:9). Rashi explica que quando cumprirmos a Torá da maneira correta, com todos os seus detalhes, então todos os povos nos considerarão uma nação de pessoas sábias e entendidas. Mas se não a cumprirmos e nos desviarmos por esquecer das Mitzvót, então os outros povos nos considerarão tolos.

Porém, desta explicação de Rashi fica uma grande pergunta: uma pessoa que se esquece das Mitzvót e se desvia dos caminhos corretos pode chegar a fazer atos terríveis. Então por que Rashi diz que esta pessoa será um tolo? Não seria mais correto dizer que ela será um Rashá (malvado)?

Explicam os nossos sábios que quando alguém faz um ato errado, mas com intenções puras e pensando em cumprir a vontade de D'us, mesmo que as circunstâncias não sejam corretas, neste caso a pessoa não é chamada de Rashá, e sim de tolo. Rashá é aquele que faz um mau ato intencionalmente, com consciência do seu erro, enquanto o tolo é aquele que faz o mau ato de forma inconsciente, achando que está fazendo a coisa certa. Ele é chamado de tolo pois seus atos não são bem recebidos por D'us, apesar do esforço e das suas boas intenções.

Obviamente que fazer maus atos de forma intencional e consciente é algo muito grave e desprezível aos olhos de D'us. Porém, de certa maneira, pode ser até pior ser um tolo do que um Rashá. O Rashá sabe que transgrediu, tem consciência de que fez algo incorreto, e por isso pode conseguir se arrepender e corrigir seu erro. Mas o tolo nem mesmo sabe que errou, e por isso não conseguirá consertar seus erros.

Pensamos que isto pode ocorrer apenas com pessoas pequenas, mas a Torá nos ensina que até mesmo gigantes espirituais cometeram erros graves sem intenção. Um dos exemplos mais marcantes ocorreu com Shaul HaMelech (Rei Shaul), que recebeu de D'us uma importante missão: destruir o povo de Amalek, o povo que representa o mal no mundo. Mas infelizmente Shaul HaMelech não cumpriu a ordem de D'us. Ele teve misericórdia do rei de Amalek, Agag, e o manteve vivo. Este erro de Shaul HaMelech, além de ter sido uma grave transgressão, teve consequências trágicas ao povo judeu. Haman, o Rashá que decretou o extermínio do povo judeu durante o exílio da Babilônia, era descendente do rei Agag. Se não fosse pela intervenção miraculosa de D'us, o povo judeu inteiro poderia ter sido destruído por ele.

Porém, o mais incrível é que Shaul HaMelech, o primeiro rei da história do povo judeu, um homem completamente puro e justo, não percebeu que errou. Quando ele voltou da guerra e se encontrou com Eliahu Hanavi, o profeta naquela época, suas primeiras palavras foram: “Bendito seja você para D'us. Eu cumpri as palavras de D'us” (Shmuel I 15:13). Eliahu Hanavi respondeu com uma forte repreensão: “Por você ter rejeitado a palavra de D'us, Ele rejeitou você como rei” (Shmuel I 15:23). Por este grave erro, Shaul Hamelech perdeu o reinado. Mas ele não estava sendo hipócrita ou falso quando disse que havia cumprido a vontade de D'us. Ele realmente achava que havia feito o que era correto, apesar de ter mudado o que D'us havia explicitamente pedido.

Devemos tomar muito cuidado com os nossos atos, e mesmo quando estamos cumprindo Mitzvót, não esquecer de olhar em volta, nunca esquecer de “andar nos caminhos de D'us”, para ter certeza de que neste momento não estamos pisando em ninguém. Pois mesmo sem intenção, se ao fazermos uma Mitzvá acabamos prejudicando outra pessoa, certamente não era isso o que D'us gostaria e, portanto, este ato não será recebido por Ele. Além disso, é importante sempre estudar e conhecer bem as Mitzvót, pois aprendemos que a ignorância não nos isenta das consequências dos nossos atos. Somente assim, conhecendo profundamente a Torá e se preocupando de verdade com as pessoas, conseguiremos alegrar D'us e todos os que estão em volta de nós.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm

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