Parashat Shemot

Cálculos humanos x cálculos divinos

No inverno de 1892, uma enorme sombra recaiu sobre o povo judeu. A Yeshivá de Vologin, uma das mais proeminentes Yeshivót da época, um modelo de Torá em toda a Europa, estava em perigo. Naquela época, o Rosh Yeshivá (Diretor espiritual) era o Rav Naftali Tzvi Yehuda Berlin zt”l (Rússia, 1816 – Polônia, 1893), mais conhecido como Netziv, um gigante de Torá. As autoridades russas, querendo arrancar a Torá do povo judeu, decretaram que na Yeshivá de Vologin fosse ensinado diariamente duas horas de estudos não judaicos. Junto com o decreto veio uma ameaça: se a diretoria se recusasse a cumprir a ordem das autoridades, a Yeshivá seria fechada.
 
O Netziv não quis receber sobre si a responsabilidade de decidir sozinho algo tão importante. Ele reuniu os maiores sábios de Torá da Europa em um encontro especialmente dedicado a discutir aquele assunto. A discussão foi difícil, pois havia muitos prós e contras para os dois lados. Todos concordavam que seria algo muito negativo incluir as duas horas de estudos não judaicos em uma Yeshivá, mas muitos consideravam que ainda assim o prejuízo seria menor do que fechar completamente a Yeshivá. Até que o Rav Yossef Dov Halevi Soloveitchik (Império Russo, 1820 – 1892), mais conhecido como Beis Halevi, com lágrimas nos olhos, pediu a palavra. Emocionado, ele falou:
 
– É verdade que temos a obrigação de manter a Torá com toda a sua força e cultivar cada vez mais alunos, para que possamos transmitir a Torá às próximas gerações. Mas isto deve ser feito da maneira como ensinaram nossos antepassados. Agora que as autoridades querem nos obrigar a ensinar a Torá de novas formas, a responsabilidade não recai mais sobre nós. Devolveremos o problema Àquele quem nos deu a Torá, para que Ele faça o que achar o melhor. Portanto, eu decido que, de acordo com os ensinamentos da Torá, a Yeshivá deve ser fechada.
 
E assim realmente aconteceu. A Yeshivá de Vologin, o maior modelo de estudo de Torá da Europa, foi fechada. Mas explica o Rav Isroel Meir HaCohen zt”l (Bieloríssia, 1838 – Polônia, 1933), mais conhecido como Chafetz Chaim, que a história não terminou aqui. Se a Yeshivá de Vologin tivesse decidido continuar com as condições impostas pelas autoridades russas, provavelmente a Torá da nossa geração teria sido esquecida. Esta é a forma de atuação do Yetser Hará (má inclinação): primeiro a Yeshivá abriria uma exceção ao permitir duas horas de estudos não judaicos, mas com o tempo provavelmente a situação se inverteria e restaria apenas duas horas de estudo de Torá. Porém, como o Netziv teve a coragem de fazer o que era correto, a Torá encontrou outros caminhos para sua continuidade. Naquela mesma época foram abertas muitas Yeshivót na Lituânia e na Polônia, que produziram os novos gigantes de Torá da geração. A Torá é como um manancial de água, pois mesmo que alguém tampe sua saída em um lugar, ela encontrará seus caminhos para fluir em outro lugar. 
 


O segundo livro da Torá, Shemot,  descreve a terrível escravidão do povo judeu no Egito, após a morte de Yaacov e seus filhos. A Parashá desta semana, Shemot, também descreve o nascimento de Moshé, o homem que, sob o comando de D'us, fez enormes milagres e salvou o povo judeu da escravidão.
 
Durante a descrição dos duros decretos do Faraó contra o povo judeu, há um versículo que nos chama a atenção: “E foi um homem da casa de Levi e tomou para si uma filha de Levi. E a mulher engravidou e deu a luz a um filho” (Shemot 2:1,2). O homem descrito neste versículo era Amram, o líder do povo judeu e um grande Tzadik (Justo). A mulher descrita no versículo era Yocheved, uma mulher corajosa que constantemente arriscava sua vida e enfrentava o temível Faraó para salvar os bebês do povo judeu. E o bebê que nasceu era Moshé Rabeinu, nosso grande salvador. Porém, o que significam as palavras “e foi um homem”? Para onde Amram foi?
 
Explica o Talmud (Sotá 12a) que “e foi um homem” refere-se a Amram ter ido de acordo com o conselho de sua filha, Miriam. Apesar de ser uma criança, Miriam já tinha uma sabedoria acima do normal. Durante os anos de escravidão, os egípcios eram extremamente cruéis e causavam muitos sofrimentos aos judeus, com terríveis castigos físicos e psicológicos. Além disso, os astrólogos do Faraó haviam previsto o nascimento do salvador do povo judeu, mas também viram que este salvador seria punido através das águas (o que realmente ocorreu quando Moshé, ao invés de pedir água para a pedra, golpeou-a, sendo castigado por este ato com a proibição de entrar na Terra de Israel). Ao escutar a temerosa notícia de que o salvador do povo judeu estava para nascer, o Faraó decretou que todos os bebês que nascessem fossem atirados ao rio. Amram, ao perceber que não havia sentido em trazer filhos ao mundo naquelas condições, decidiu se separar de sua esposa Yocheved. Como ele era o líder da geração, sua atitude serviu como exemplo para o resto do povo, e todos se divorciaram de suas esposas para não terem mais filhos.
 
Foi neste contexto que Miriam quis aconselhar seu pai. Ela percebeu que seu pai havia cometido um grave equívoco ao se divorciar, e demonstrou racionalmente que ele estava causando ao povo judeu algo ainda mais duro do que o próprio decreto do Faraó. Em primeiro lugar, pois o Faraó havia feito um decreto que atingia apenas os homens, mas Amram havia decretado algo que afetava tanto os homens quanto as mulheres. Além disso, o Faraó havia decretado a morte dos judeus apenas no Olam Hazé (mundo material), enquanto Amram havia decretado a morte dos judeus no Olam Hazé e no Olam Habá (Mundo Vindouro), pois a única maneira de chegar ao Olam Habá é passando pelo Olam Hazé.
 
A grandeza de Amram foi demonstrada através de sua enorme humildade. Mesmo que o conselho vinha de uma criança, de sua própria filha, ele percebeu que ela tinha razão e se arrependeu de seu erro, imediatamente casando-se novamente com sua esposa. É justamente sobre este novo casamento de Amram e Yocheved que descreve o versículo antes do nascimento de Moshé. Mas o que Miriam havia entendido que até mesmo Amram, o líder do povo judeu, não havia? De acordo com a lógica humana, Amram parecia estar certo. Os judeus já estavam há quase dois séculos imersos em terríveis sofrimentos, então por que ter filhos em um mundo tão cruel, sem esperanças de melhorias? Afinal, qual foi o erro de Amram?
 
O Tanach traz outro grande Tzadik que cometeu um erro parecido. O Rei Chizkiahu ficou doente e sentiu que suas forças diminuíam a cada dia. Ele recebeu a visita do profeta Yeshaiahu, que vinha trazer uma mensagem de D'us: a morte do rei se aproximava, e ele também perderia o Mundo Vindouro. Mas o Rei Chizkiahu era uma pessoa muito correta e não entendeu porque merecia um castigo assim tão duro. O profeta explicou que Chizkiahu estava sendo punido por nunca ter se casado. Porém, Chizkiahu explicou que havia um forte motivo para esta sua decisão. Ele sabia profeticamente que seu filho seria uma grande Rashá (malvado), e por isso quis evitar a vinda de alguém tão ruim ao mundo. O profeta explicou para ele que, a partir do momento em que D'us havia dado aos seres humanos a Mitzvá de “Pru Urvu” (crescer e multiplicar), não temos o direito de fazer cálculos sobre as consequências desta Mitzvá. Chizkiahu entendeu seu erro, escutou as palavras do profeta e se arrependeu de uma maneira tão sincera que D'us o perdoou e lhe acrescentou ainda muitos anos de vida.
 
Explica o Chafetz Chaim que muitas pessoas em nossa história, mesmo sendo Tzadikim e grandes em Torá, acabaram cometendo este tipo de erro. Os casos de Amram e Chizkiahu nos ensinam algo muito importante em relação ao ser humano e suas obrigações. Não temos a permissão de querer analisar tudo o que ocorre de acordo com a nossa lógica e entendimento, e direcionar nossas vidas de acordo com os nossos sentimentos. Mesmo quando queremos fazer “melhor do que D'us pediu”, isto é, mesmo quando somos sinceros e realmente queremos fazer o que é correto de acordo com o nosso entendimento, mesmo assim devemos sempre lembrar o quanto somos limitados, pois o ser humano somente consegue enxergar as consequências dos seus atos a curto prazo, enquanto D'us consegue enxergar tudo a longo prazo. Quando D'us nos comanda algo, não há lugar para questionamentos nem cálculos racionais.
 
Dizemos todos os dias na nossa reza da manhã: “Muitos são os pensamentos no coração do ser humano, mas é a vontade de D'us que sempre se cumpre”, e a Torá nos traz muitos exemplos práticos deste conceito espiritual. O Faraó decretou que todos os bebês homens fossem atirados no rio, inclusive os bebês egípcios, pelo medo de que o salvador do povo judeu nasceria naquele momento. Mas foi justamente este decreto que fez com que Batia, a filha do Faraó, encontrasse Moshé dentro da cestinha e o criasse dentro do palácio real, sendo alimentado e protegido pelo mesmo Faraó que fez de tudo para exterminá-lo. Quando Yossef foi vendido pelos seus irmãos ao Egito, parecia algo terrível, uma tragédia, mas na verdade era a preparação para a salvação do povo judeu, pois Yossef conseguiu acabar com a fome que mataria sua família. Já a ida de Yaacov para o Egito, para reencontrar Yossef depois de 22 anos, parecia algo bom e feliz, mas na realidade era o início do exílio do povo judeu, a preparação para a terrível escravidão que viria. E se pararmos para refletir, perceberemos algo ainda mais incrível. Miriam e seu conselho estão por trás do próprio nascimento de Moshé, o salvador do povo judeu, o que Amram teria evitado caso não tivesse se casado novamente com Yocheved. Isso demonstra o quanto somos limitados e que apenas D'us, que controla tudo, sabe exatamente os impactos e as consequências de cada pequeno acontecimento.

A Parashá Shemot é um grande ensinamento de que os atos e artimanhas do ser humano na realidade não conseguem causar nenhum impacto real nos decretos Divinos. Como ensinam os nossos sábios: “A Teshuvá (arrependimento), a Tefilá (reza) e os atos de Tzedaká (caridade) podem mudar um Decreto Celestial”. Todos os nossos outros atos são apenas para despertar a Misericórdia Divina. Quando insistimos em fazer cálculos e ir contra a vontade de D'us, não apenas não alcançamos nosso objetivo, mas também as consequências muitas vezes saem ao contrário do que planejávamos, como ocorreu com o Faraó. Isto nos ensina a cumprirmos a vontade de D'us, mesmo quando possa parecer ilógico, pois apesar dos nossos esforços, no final será a vontade Dele que se cumprirá.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm

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