Do fundo do poço para o céu

O FUNDO DO POÇO PARA O CÉU – PARASHAT ACHAREI MÓT 5776 (06 de maio de 2016) 

“Por volta do ano de 1900 havia um judeu em Jerusalém muito pobre, chamado Sr. Pessach, que se mudou para a cidade de Tzefat. Tudo o que ele tinha era um volume do Talmud com dois Tratados, Beitzá e Rosh Hashaná, que ele revisou três mil vezes. Depois que ele faleceu, sua família decidiu escrever este fato em sua lápide, para que as pessoas que visitassem seu túmulo vissem o que é o amor verdadeiro pelo estudo da Torá.
 
Mais de cem anos depois, um garoto de dezesseis anos chamado David (nome fictício) estava tendo problemas na Yeshivá. Ele simplesmente não conseguia entender o Talmud e não conseguia se concentrar nas aulas. Sem se aconselhar com ninguém, David decidiu abandonar a Yeshivá. Infelizmente, depois disso ele começou a andar com um grupo de rapazes de má índole, e os amigos da Yeshivá ficaram sem escutar notícias dele por um bom tempo.
 
Porém, certo dia, cerca de seis meses depois, David ressurgiu de repente na Yeshivá. Sentou-se na sua mesa, abriu seu livro do Talmud e começou a estudar com fervor, como se houvesse fogo dentro dele. O Rosh Yeshivá (Diretor espiritual), curioso, aproximou-se dele e perguntou:
 
– David, o que aconteceu com você? Sinceramente, eu achei que não te veria nunca mais na Yeshivá. O que te fez voltar, e com tanto fervor?
 
– Rav, eu vou te contar – respondeu David – Quando eu saí da Yeshivá, me envolvi com um grupo de amigos que eram uma péssima influência. Eles não levavam a vida a sério, estavam sempre com bebidas e drogas, se envolviam em pequenos furtos e ficavam vagando sem destino. Nós saímos de Jerusalém e fomos para Tel Aviv, depois para Netanya, e para várias outras cidades, dormindo em bancos de praça e em albergues. Nossa vida era completamente vazia e sem sentido, ninguém naquele grupo tinha qualquer objetivo na vida. Um dia chegamos à cidade de Tzefat e, quando estávamos vagando por um velho cemitério, uma das lápides chamou minha atenção. A inscrição dizia: “Aqui jaz o Sr. Pessach, que revisou os Tratados de Beitzá e Rosh Hashaná três mil vezes”. Foi um grande choque para mim, pois pensei: “Enquanto eu estou vivendo uma vida completamente vazia e sem sentido, há pessoas que realmente levam a vida a sério”. Eu odiei tanto continuar naquela vida vazia e sem sentido que decidi voltar para a Yeshivá, com uma vontade renovada, e desta vez eu garanto que não vou mais embora” (História Real)
 
Muitas pessoas acabam, em algum momento da vida, se questionando sobre viver sem sentido. Algumas tomam atitudes e mudam, outras infelizmente ficam apenas nos questionamentos.

 

A Parashat desta semana, Acharei Mót (que literalmente significa “Depois da morte”), descreve todos os serviços que o Cohen Gadol (Sumo Sacerdote) fazia no Beit Hamikdash (Templo Sagrado) no dia mais sagrado do ano, Yom Kipur, o “Dia da Expiação” do povo judeu. Além disso, a Parashat também traz uma lista de vários tipos de relacionamentos íntimos proibidos, muitos que implicavam até mesmo em pena de morte. Porém, antes de listar os relacionamentos proibidos, a Torá faz uma interessante introdução: “Não façam as práticas da terra do Egito, na qual vocês moraram; e não façam as práticas da terra de Knaan, para onde Eu trago vocês” (Vayikrá 18:3). Rashi (França, 1040 – 1105) explica que os egípcios e os habitantes de Knaan eram as nações moralmente mais decadentes da face da Terra. E, em especial, as regiões onde os judeus moravam eram as piores e mais corrompidas de todas. Sabemos que não existem coincidências, então por que D'us intencionalmente colocou o povo judeu em lugares tão corrompidos e moralmente degradados?
 
Responde o Rav Eliyahu Dessler zt”l (Império Russo, 1892 – Israel, 1953) que deste ensinamento podemos aprender algo muito importante sobre como reagir às más influências dos ambientes onde vivemos. Normalmente somos fortemente influenciados pela sociedade na qual vivemos, e quando esta sociedade fica repleta de pessoas com má índole, mesmo as boas pessoas acabam recebendo influências negativas. Porém, se a pessoa é forte o suficiente para superar estas más influências, não permitindo que elas afetem seus valores morais, então acontece algo incrível: estas más influências podem até mesmo ajudá-la a fortalecer sua espiritualidade e seu serviço Divino. Mas como pode ser que más influências podem nos deixar espiritualmente mais fortes?
 
Tudo o que D'us faz no mundo material nos ensina algo sobre o mundo espiritual. Por exemplo, como funcionam as vacinas, que nos protegem de vários tipos de doenças? No processo de imunização, a vacina injeta no corpo da pessoa os próprios vírus e bactérias que causam certas doenças, mas já mortos ou enfraquecidos. O nosso sistema imunológico, ao perceber a presença destes “corpos estranhos”, produz anticorpos, um verdadeiro “exército de proteção” contra estes vírus e bactérias. A partir do momento em que o corpo produziu os anticorpos, mesmo que o vírus e a bactéria entrem na pessoa, são facilmente combatidos e não conseguem infectá-la. Isto quer dizer que o princípio ativo da vacina é justamente utilizar a doença para produzir uma pessoa mais forte e saudável.

Este mesmo princípio pode se aplicar em nossa espiritualidade. Explica o Rav Dessler que quando a pessoa vê em volta de si um ambiente negativo e consegue vencer as más-influências, o mal se torna ainda mais repugnante aos seus olhos, pois ela consegue alcançar um reconhecimento mais profundo das falhas e defeitos da sociedade onde vive, permitindo que ela se fortaleça ainda mais em sua apreciação do bem. Isto explica o movimento tão forte dos “Baalei Teshuvá”, pessoas que abandonaram vidas seculares e se conectaram aos valores milenares da Torá. Normalmente os “Baalei Teshuvá” são pessoas que enxergaram que estavam vivendo em sociedades sem objetivos e sem sentido, e cuja moralidade se degradava diante dos seus olhos em uma velocidade impressionante. E é justamente por terem enxergado este lado tão baixo da sociedade que os “Baalei Teshuvá” acabam se tornando “militantes” na tentativa de ajudar outras pessoas a despertarem do sono espiritual e começarem a viver uma vida com mais sentido e moralidade.
 
Isto quer dizer que D'us intencionalmente colocou o povo judeu no Egito, um lugar moralmente degradado e baixo, para que os judeus pudessem desenvolver um profundo ódio por toda aquela impureza. De acordo com o Rav Dessler, a repugnância que eles desenvolveram pela impureza espiritual do Egito, mais do que os sofrimentos físicos, foi o que verdadeiramente motivou os judeus a gritarem para que D'us os libertasse daquele lugar terrível. E foi justamente esta repugnância que permitiu que eles crescessem espiritualmente de maneira tão intensa e rápida, saindo do nível 49 de impureza e atingindo, em pouco tempo, o nível de santidade necessária para poderem receber a Torá no Monte Sinai. Se eles estivessem em um ambiente menos imoral, não teriam sido capazes de crescer tanto e de maneira tão rápida.
 
Isto também explica por que o povo judeu teve que ir para uma terra igualmente repugnante. Parte do plano de D'us era que o povo judeu visse o comportamento completamente imoral dos habitantes da terra de Knaan e desenvolvesse uma aversão ao mal, o que elevaria sua apreciação pela moralidade contida na Torá. Obviamente os judeus tinham o livre arbítrio, isto é, podiam tanto rejeitar completamente os maus hábitos dos habitantes de Knaan quanto aceitá-los como vizinhos e, com isso, serem influenciados de forma negativa. Infelizmente a história nos ensina que eles não destruíram completamente seus vizinhos e, com o tempo, acabaram sendo influenciados de forma negativa por eles. É justamente o mesmo teste que cada um de nós passa na vida: aceitar os valores imorais da sociedade e, infelizmente e sem perceber, acabar vivendo de acordo com eles, ou refutá-los completamente e enxergá-los como sendo hábitos ruins e repugnantes.
 
É por isso que vemos que, durante toda a história do povo judeu, fomos colocados por D'us em ambientes muito negativos e corrompidos, desde a época dos nossos patriarcas. Na verdade, todas as vezes que D'us queria que alguém alcançasse níveis espirituais extremamente elevados, Ele lançava esta pessoa nos ambientes mais baixos e corrompidos, para que esta pessoa pudesse aprender o quanto o mal pode ser algo baixo e negativo, e assim se fortalecer para buscar o extremo oposto, o bem absoluto.
 
Este conceito do Rav Dessler nos ajuda a entender uma passagem interessante da Hagadá de Pessach, que descreve o processo de libertação do povo judeu da terrível escravidão do Egito. No início da Hagadá mencionamos que nossos antepassados foram idólatras. Porém, como isto se conecta com a história da saída do Egito? A resposta é que justamente pelo fato de Avraham Avinu estar rodeado por tanta negatividade é que ele conseguiu chegar a um nível tão alto de santidade, a ponto de sua força espiritual nunca mais ser anulada. A redenção do Egito brotou diretamente da santidade alcançada por Avraham. Por isso mencionamos na Hagadá que nossos antepassados foram idólatras, justamente para ressaltar que o crescimento de Avraham e o incrível nível espiritual que ele chegou foi consequência direta da impureza do ambiente no qual ele vivia, e foi esta grandeza que plantou a semente da saída do Egito.
 
Ensina o Rav Yehonasan Gefen que é por isso também que a Hagadá menciona muitas más influências, que incluem nossos ancestrais idólatras, os egípcios malvados e Lavan, o arameu, conhecido por sua maldade e malandragem. Talvez a intenção dos nossos sábios que compilaram a Hagadá era despertar o nosso desgosto e aversão por comportamentos tão imorais, elevando assim nossa apreciação de D'us por ter nos salvado deles, fisicamente e espiritualmente, e por ter nos dado a Torá, nosso “Manual” de boas condutas.
 
No mundo de hoje é quase inevitável sermos “contaminados” pelas más influências. Somos bombardeados diariamente, através das notícias, dos filmes e das pessoas à nossa volta, com mensagens negativas. Comportamentos promíscuos, enganação, roubo e todos os tipos de desonestidade se banalizaram. Atualmente a exceção é ser correto e honesto. Obviamente que o mais aconselhável é nos esforçarmos para reduzir ao máximo estes tipos de influências negativas em nossas vidas. Apesar disso, devemos estar conscientes de que é impossível estarmos completamente “blindados”. O ensinamento do Rav Dessler nos ajuda a ver nossa realidade de uma maneira diferente, para aprendermos a lidar com estas influências negativas, e talvez até mesmo utilizá-las para o bem. Quando observamos a decadência da sociedade ocidental, e para onde a falta de moralidade está levando a vida das pessoas, podemos melhorar nossa apreciação da beleza do estilo de vida equilibrado ensinado pela Torá. Pois quanto mais escuro, mais apreciamos o brilho de uma luz.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm

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