Ensinando para aprender

Certa vez o Rav Avraham Yeshayahu Karelitz zt”l (Bielorrússia, 1878 – Israel, 1953), mais conhecido como Chazon Ish, foi fazer uma visita à Yeshivá de Ponovitz, que ficava na mesma cidade em que ele morava, Bnei Brak. Ele percebeu que havia novos estudantes na Yeshivá que estavam tendo muita dificuldade para acompanhar as aulas e se aprofundar nos estudos. O Chazon Ish sugeriu que os alunos mais velhos da Yeshivá, que já tinham um maior domínio do assunto estudado, dedicassem uma pequena parte do dia para estudar com os alunos mais novos. Os alunos mais velhos responderam que gostariam muito, mas que infelizmente não tinham tempo sobrando para isso, pois estavam extremamente ocupados com seu próprio estudo de Torá. Mas o Chazon Ish não desistiu. Ele pediu para que a seguinte mensagem fosse transmitida aos alunos mais velhos:

– Eu sei que vocês colocam Tefilin todos os dias. Mas como isto é possível, se é um ato que tira o tempo de estudo de Torá de vocês? A resposta é que vocês encontram tempo para colocar Tefilin todos os dias pois sabem que é uma Mitzvá da Torá. Porém, vocês estão desprezando uma Mitzvá que não é menos importante do que a Mitzvá de Tefilin: a Mitzvá de dedicar parte do tempo de vocês para ajudar os alunos mais novos com o estudo de Torá deles.

O Chazon Ish estava transmitindo aos alunos de Ponovitz que ensinar Torá aos outros deve ser visto como uma obrigação, com as mesmas rigorosidades que aplicamos a todas as outras Mitzvót da Torá. Por isso, o argumento de “não tenho tempo” torna-se algo completamente infundado e sem sentido. 
 


Na Parashá desta semana, Vaetchanan, Moshé continuou seu discurso de despedida, relembrando muitos erros cometidos pelo povo judeu, inclusive o erro que o levou a ser castigado por D’us e não entrar na Terra de Israel. Depois disso a Parashá fala também sobre as cidades de refúgio, repete os 10 Mandamentos e traz o primeiro parágrafo do Shemá Israel, incluindo o famoso trecho “Escuta, Israel. Hashem é nosso D’us, Hashem é um” (Devarim 6:4).

Há algo interessante na continuação do Shemá Israel: “E que estas palavras que Eu ordeno hoje a vocês estejam sobre seus corações. E você deverá ensiná-las aos seus filhos, e deverá falar delas quando se sentar na sua casa, quando você andar no caminho, quando você se deitar e quando você se levantar” (Devarim 6:6,7). Nossos sábios explicam que esta é a fonte da Mitzvá de “Talmud Torá” (Estudo da Torá), a Mitzvá que é descrita como sendo equivalente a todas as outras Mitzvót juntas. Mas por que, surpreendentemente, a Mitzvá de estudar Torá não diz “você deve estudar”, e sim “você deve ensinar”?

O Rav Avraham Shmuel Binyamin Sofer zt”l (Hungria, 1815 – 1871), mais conhecido como Ktav Sofer, explica que o versículo sim nos instrui a estudar a Torá, ao afirmar “vedibarta bam” (e deverá falar delas). Mas mesmo assim a dúvida continua, pois apesar do versículo estar nos instruindo a estudar Torá, isto é falado somente depois da instrução de ensiná-la. Como alguém pode ensinar algo que ainda não estudou? Por que a Torá inverteu a ordem? Ele responde que, ao inverter a ordem, a Torá nos ensina um fundamento muito importante da Mitzvá de “Talmud Torá”: mesmo o estudo particular da pessoa deve ser feito com o propósito final de ensinar Torá aos outros. A fonte principal de “Talmud Torá” é “deverá ensiná-las” pois o propósito do nosso estudo de Torá é nos tornarmos pessoas capazes de transmiti-la aos outros.

Obviamente que estudar Torá não é apenas um meio para estarmos apto a ensiná-la aos outros. A pessoa precisa estudar Torá para conseguir construir seu relacionamento com D’us, pois a Torá é o nosso “Manual de instruções” espiritual. Apesar disso, fica claro através dos comentários do Ktav Sofer o quanto estudar Torá sem ensiná-la deixa um grande “vazio” no cumprimento da Mitzvá de “Talmud Torá”. Baseado nisto, os nossos sábios ensinam: “Aquele que estuda para ensinar é dado a ele a oportunidade de estudar e ensinar” (Pirkei Avót 4:5). Isto significa que querer ensinar é um requisito essencial para o foco do nosso estudo, e aquele que apenas estuda e não ensina nunca chegará a ser completo em seu “Talmud Torá”. É por isso que o versículo ressalta o “ensinar” antes do “estudar”.
Há mais um detalhe no versículo que ensina outro aspecto da Mitzvá de “Talmud Torá”. Normalmente o verbo utilizado para “ensinar” é “Lelamed”, mas neste versículo o verbo utilizado é “Veshinantam”. Rashi (França, 1040 – 1105) explica que a linguagem “veshinantam” implica em um maior nível de claridade no entendimento de algo, de maneira que caso alguém faça uma pergunta, a pessoa pode responder sem gaguejar. Daqui aprendemos que, quando uma pessoa estuda como uma preparação para ensinar, ela ganha um nível de entendimento e claridade muito maior. Como a pessoa sabe que será desafiada no seu entendimento e na sua explicação, isto serve como um incentivo para que ela estude com mais interesse e cuidado. É isto o que o Talmud quis transmitir ao afirmar: “Aprendi muita Torá dos meus professores, mais ainda dos meus amigos, e acima de tudo dos meus alunos” (Makót 10a).

Porém, poderíamos pensar que tudo isto se aplica apenas às situações nas quais nós também temos benefício direto do que estamos ensinando, como quando os alunos já conhecem Torá e nos deixarão mais “afiados” com suas perguntas e comentários. Mas explica o Rav Moshé Schreiber zt”l (Alemanha, 1762 – Eslováquia, 1839), mais conhecido como Chatam Sofer, que isto também é valido para aquele que abre mão do seu próprio crescimento pessoal em prol da espiritualidade dos outros. Aprendemos isto do comportamento de Avraham Avinu, que dedicou seu tempo e seus esforços para ensinar ateus ignorantes sobre a existência de D’us, ao invés de focar em seu próprio crescimento. Neste tipo de situação, apesar de parecer que a pessoa deixará de ganhar ao abrir mão do seu próprio crescimento, a verdade é que ocorre justamente o contrário. É óbvio que devemos nos esforçar, mas todo o conhecimento que adquirimos não é fruto do nosso esforço, e sim consequência da misericórdia de D’us, o Dono de todo o conhecimento. Quando Ele vê alguém se esforçando, tem misericórdia e dá para ele conhecimento e entendimento das coisas. Já aquele que abandona seus próprios interesses em prol dos outros recebe ainda mais misericórdia de D’us. Apesar de ter menos tempo para investir no seu próprio crescimento espiritual, D’us faz com que ele possa conseguir crescer em menos tempo e atingir níveis espirituais que vão além do entendimento lógico do ser humano.

Das palavras do Shemá aprendemos que ensinar Torá aos outros é parte essencial da Mitzvá de “Talmud Torá”, e que aquele que ensina pode colher benefícios incalculáveis, diretos e indiretos. Como outras Mitzvót, ensinar Torá aos outros não é apenas um ato de Chessed (bondade), e sim uma obrigação. Muitos sábios de Torá, como o Rav Moshe Feinstein zt”l (Lituânia, 1895 – EUA, 1986), legislaram que, da mesma maneira que uma pessoa deve doar para pessoas necessitadas parte do dinheiro que recebe mensalmente, assim também todo aquele que tem recursos e aptidões está obrigado a doar parte do seu tempo para ajudar na espiritualidade dos outros.

Um último ponto interessante deste versículo do Shemá Israel é a linguagem “deverá ensiná-la aos seus filhos”. Rashi explica que não se refere aos filhos biológicos, e sim aos alunos. Então por que a Torá não escreveu “deverá ensiná-la aos seus alunos”? Para ressaltar que há um paralelo muito forte entre ensinar Torá a um aluno e conceber um filho. Quando uma pessoa traz uma criança ao mundo, ela está dando a esta criança o incrível presente da vida. De maneira semelhante, quando uma pessoa ensina Torá para outra pessoa, está dando a ela a oportunidade de alcançar a vida eterna. Portanto, ao ensinar Torá, a pessoa alcança o mesmo potencial que tem os pais: o potencial de dar vida. De acordo com o Talmud (Baba Metsia 33a), ensinar Torá para uma pessoa é considerado um Chessed ainda maior do que concebê-la, pois os pais trazem os filhos para o Olam Hazé (mundo material), enquanto o professor de Torá tem o potencial de, ao ensinar sabedoria e Torá ao próximo, trazê-lo para o Olam Habá (Mundo Vindouro), para a vida eterna.

Para podermos compartilhar da nossa espiritualidade com os outros não é necessário ser rabino. Convidar uma pessoa afastada para experimentar uma refeição de Shabat, compartilhar com os outros alguma ideia bonita que escutamos em uma aula de Torá ou dedicar parte do nosso tempo para ensinar pessoas a cumprir Mitzvót são apenas alguns exemplos de como podemos dedicar parte do nosso tempo para ajudar outras pessoas.

Quando estivermos procurando algum bom ato para fazer, algo que possa ajudar os outros, não devemos esquecer que ensinar Torá para alguém e compartilhar da nossa espiritualidade é uma das maiores e mais completas bondades que um ser humano pode fazer na vida.

SHABAT SHALOM                                           

Rav Efraim Birbojm

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