Parashat Vayechi

Inteiro, e não pela metade

O Rav Israel Salanter zt”l (Lituânia, 1810 – Prússia, 1883) foi um dos maiores rabinos de sua geração. Ele se destacou não apenas na grandeza de seu conhecimento de Torá, mas principalmente no trabalho que ele fazia, consigo mesmo e com seus alunos, para atingir a excelência nos traços de caráter. Ele instituiu em sua Yeshivá (centro de estudo de Torá) que, além do estudo do Talmud, os alunos também deveriam dedicar parte do dia ao estudo de Mussar (estudo que ajuda a pessoa a se tornar um ser humano melhor). Ele incentivava mesmo seus melhores alunos, aqueles que mais se destacavam no estudo do Talmud, a também estudarem Mussar.
 
Certa vez, alguém que não concordava com os métodos de ensino do Rav Salanter questionou a permissão de interromper o estudo de Talmud para estudar Mussar, alegando que isso provavelmente comprometeria a grandeza no estudo de Torá dos alunos dele. O Rav Salanter respondeu que havia aprendido isto de uma Halachá (Lei Judaica) em relação às Brachót que fazemos antes de comer algo. Ao ver a expressão de dúvida no rosto da pessoa que havia questionado, o Rav Salanter explicou:
 
– Existe uma série de prioridades para fazermos Brachót nos alimentos. Por exemplo, quando temos uma fruta completa e outra apenas pela metade, o correto é fazer a Brachá na fruta inteira. Já quando temos uma fruta pequena e outra grande, a prioridade é fazer a Brachá na fruta grande. Porém, o que fazemos quando temos uma fruta inteira e pequena, e outra que é grande mas não está inteira? Para qual das duas damos a preferência da Brachá?
 
– A Halachá ensina que a preferência é dada para a fruta inteira, mesmo que seja menor – respondeu o Rav Salanter – Isto significa que é mais importante a pessoa ser menor em Torá e completa do que grande em Torá e incompleta. Por isso, aquele que estuda Torá e também trabalha em seus traços de caráter, tornando-se alguém completo, está em um nível maior do que aquele que tem mais estudo de Torá e é menos refinado em seus traços de caráter. 

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Nesta semana lemos a Parashat Vayechi, a última Parashat do livro de Bereshit, que descreve as Brachót eternas que Yaacov deu aos seus filhos antes de sua morte. Cada um dos filhos de Yaacov recebeu uma Brachá única e especial, sob medida para seus talentos e necessidades específicas. Depois desta Brachá individual, Yaacov deu a todos uma Brachá coletiva, como está escrito: “E isto é o que falou para eles seu pai, e os abençoou. Cada um de acordo com sua Brachá ele (Yaacov) os abençoou” (Bereshit 49:28).
 
Rashi (França, 1040 – 1105), comentarista da Torá, nos chama a atenção para dois pontos interessantes neste versículo. Em primeiro lugar, se Yaacov já havia abençoado cada um dos seus filhos individualmente, por que precisou dar uma nova Brachá? Além disso, há um aparente erro de concordância neste versículo, pois deveria estar escrito “cada um de acordo com sua Brachá ele o abençoou”. Mas por algum motivo o versículo termina no plural, “os abençoou”. O que a Torá está nos ensinando ao mudar a concordância do versículo?
 
Explica Rashi que a Brachá individual que Yaacov deu para cada um de seus filhos não se aplicava aos outros. Por exemplo, Yehudá foi abençoado com a força de um leão, enquanto Biniamin foi abençoado com a capacidade de pilhagem do lobo. Portanto, Biniamin não teria a força do leão nem Yehudá teria a capacidade de pilhagem do lobo. O versículo diz que Yaacov deu uma nova Brachá aos seus filhos, e termina com o plural “os abençoou”, para nos ensinar que, além da Brachá específica para cada um de seus filhos, Yaacov deu uma Brachá coletiva que incluía cada filhos nas Brachót dos outros filhos. Isto quer dizer que, com a Brachá coletiva de Yaacov, Biniamin também recebeu a força do leão e Yehudá também recebeu a capacidade de pilhagem do lobo. Porém, esta explicação de Rashi desperta outro questionamento. Se nesta Brachá coletiva Yaacov abençoou todos os filhos com todas as Brachót, então por que ele deu Brachót individuais? Não seria suficiente dar apenas as Brachót de forma coletiva, já incluindo todos os filhos em todas as Brachót?
 
Responde o Rav Yehuda Loew zt”l (Polônia, 1525 – República Checa, 1609), mais conhecido como Maharal de Praga, que apesar de cada filho também ter recebido as Brachót dos outros irmãos, isto não os igualou completamente, pois aquele que recebia a Brachá individualmente a recebia de maneira mais forte, enquanto os outros irmãos recebiam apenas parte daquela Brachá. Isto quer dizer que cada um dos irmãos recebeu apenas um aspecto da Brachá dada de forma específica aos outros irmãos. Por exemplo, Yehudá recebeu o maior nível de bravura e coragem, representado pela força do leão, enquanto seus irmãos receberam apenas certos elementos do traço de caráter da bravura, mas não a força completa. E assim foi com cada uma das Brachót.
Porém, ainda não fica claro qual foi o motivo de Yaacov ter dado para cada filho, além da Brachá específica, também alguns elementos da Brachá dada especificamente aos outros irmãos. Cada um não deveria ter ficado apenas com a sua Brachá específica, que ia de acordo com seus talentos e necessidades pessoais?
 
Explica o Rav Yehonasan Gefen que todos têm áreas na vida na qual se destacam. Porém, o ideal é a pessoa se esforçar para ser “completa”, isto é, ela pode até mesmo se especializar em certa área, mas isto não a isenta de também buscar o aperfeiçoamento em outras áreas, mesmo naquelas que não são tão naturais para ela. Isto se aplica para várias áreas, tanto para o objetivo de vida da pessoa quanto para seus traços de caráter e seu estudo de Torá.
 
Em relação ao objetivo de vida, há muitas funções que devemos desempenhar. Por exemplo, devemos ser pais, cônjuges, amigos, professores, filhos, etc. Ao querer dar uma atenção especial a certa área, como a educação dos filhos, a pessoa pode acabar se desequilibrando. A educação dos filhos é realmente algo muito importante, fundamental para criarmos uma sociedade saudável, mas a pessoa não pode focar demasiadamente nesta área, pois isto ocorrerá à custa de outras áreas importantes da vida. É de vital importância que a pessoa se dedique para ser um bom pai, mas se é apenas isto que ela faz o tempo inteiro, outras funções na sua vida serão prejudicadas. O segredo do sucesso é o equilíbrio entre o trabalho, o tempo com a família, o estudo de Torá, os atos de Chessed (bondade) e as outras funções que um judeu deve cumprir. Um bom indicador de que uma área está superdimensionada é quando as outras áreas começam a demonstrar sinais de carência. Se a pessoa passa demasiadamente tempo com a família e por isso não consegue estabelecer tempos fixos de estudo de Torá, ou se passa tempo demais no trabalho e por isso não consegue dar atenção para a esposa e os filhos, então é sinal de que há algo errado.
 
Esta necessidade de sermos “completos” também se aplica na área dos nossos traços de caráter. As pessoas normalmente apresentam certas tendências naturais, como aquelas com mais propensão a fazer bondades e aquelas com mais propensão a buscar justiça. A tendência natural é focarmos nosso tempo e nossa energia nestes traços de caráter, em detrimentos de outras características. Por exemplo, uma pessoa que naturalmente faz Chessed pode passar horas ajudando outras pessoas, mas não dedica nem mesmo um minuto para melhorar sua autodisciplina. É natural e correto uma pessoa focar suas forças no que ela já tem um gosto ou uma facilidade natural, pois é certamente uma área onde ela terá mais chances de ter sucesso. Porém, grande parte da recompensa pelo crescimento de uma pessoa vem das conquistas em áreas que não são naturalmente fáceis para ela.
 
Uma demonstração do quanto isto é importante é observado em relação aos nossos patriarcas. Eles enfrentaram seus maiores testes na vida justamente nas áreas que eram opostas aos seus traços de caráter naturais. Por exemplo, Avraham chegou à excelência no traço de caráter de bondade e misericórdia, e enfrentou o incrível teste da “Akeidat Ytzchak”, tendo que vencer sua característica de misericórdia e estar disposto a sacrificar seu próprio filho para cumprir a vontade de D'us. Já o maior desafio de Yaacov, que representa a característica da verdade, foi ter que enganar Reshaim (más pessoas) utilizando a característica da mentira, o oposto do traço de caráter da verdade.
 
O equilíbrio também é necessário na área do estudo da Torá, como ensinam nossos sábios: “Se não tem Torá, não tem “Derech Eretz” (bons modos). E se não tem Derech Eretz, não tem Torá” (Pirkei Avót 3:17). O Ramban zt”l (Nachmânides) (Espanha, 1194 – Israel, 1270) explica que estes dois aspectos, o estudo da Torá e o Derech Eretz, se complementam. Isto quer dizer que a pessoa não pode focar em demasia no seu estudo de Torá sem dar nenhuma ênfase ao conserto dos seus traços de caráter. E, da mesma maneira, não é possível que a pessoa conserte com sucesso seus traços de caráter sem estudar Torá, pois a Torá é o “Manual de Instruções” de como nos comportarmos em todas as áreas da vida.
 
É possível aprender muitas lições com as Brachót que Yaacov deu para cada um dos seus filhos. Mas uma das lições mais importantes é que, apesar de ser algo positivo a pessoa se especializar no que ela gosta e tem habilidades naturais, também temos a obrigação de sermos “completos”, e isto inclui o esforço para conquistar as áreas que não sentimos uma facilidade ou um gosto natural por elas. Isto se assemelha a uma academia de ginástica, pois normalmente gostamos de fazer apenas os exercícios que são mais fáceis ou mais prazerosos. Porém, o correto é trabalhar todos os músculos, pois o corpo só funciona de maneira perfeita quando todas as suas partes foram devidamente trabalhadas. Assim também ocorre espiritualmente, o ideal é trabalharmos em todas as áreas, não apenas nas que são mais fáceis ou gostosas, mas também naquelas que são mais difíceis ou não nos agradam tanto.

Certamente trabalhar em áreas que não gostamos é uma tarefa difícil. Muitas vezes D'us nos manda testes para que possamos desenvolver estas áreas, como aconteceu com os patriarcas. Mas não precisamos esperar os testes, pois Yaacov abençoou seus filhos e seus descendentes justamente com a força necessária para que, com o devido esforço, consigamos atingir o objetivo de nos tornarmos seres humanos completos.

SHABAT SHALOM

Rav Efraim Birbojm

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