Estudo da ToráParashat Chukat

O gosto das Mitzvot

“O Rav Israel Salanter zt”l (Lituânia, 1810 – Prússia, 1883) certa vez precisou passar o Shabat na cidade de Kovno. Como ele era uma pessoa ilustre, todos correram para convidá-lo, mas ele escolheu passar o Shabat na casa de um padeiro que não tinha filhos, pois não queria que ninguém deixasse de alimentar seus próprios filhos para alimentá-lo. O padeiro era um judeu observante, mas não se dedicava muito ao estudo da Torá.

Na noite de Shabat, depois da Tefilá (reza), o padeiro entrou em casa com seu ilustre convidado e viu que já estava tudo pronto para o Kidush, mas as Chalót ainda não estavam cobertas. Muito irritado, com vergonha de o Rav Salanter pensar que em sua casa as Mitzvót não eram cumpridas da maneira correta, ele gritou com sua esposa:

– Por que os Chalót não estão cobertas? Quantas vezes eu preciso te lembrar de cobrir as Chalót antes do Kidush?

A pobre mulher, sentindo-se completamente humilhada diante do ilustre convidado, apressou-se em cobrir as Chalót, mas o Rav Salanter não pôde deixar de perceber as lágrimas nos olhos dela. Quando o padeiro quis dar ao rabino a honra de fazer o Kidush, o Rav Salanter perguntou se antes eles poderiam conversar reservadamente. O padeiro dirigiu-se com o rabino ao cômodo ao lado.

– Você pode me dizer por que devemos cobrir as Chalót antes do Kidush? – perguntou o Rav Salanter.

– Rabino, até mesmo uma criança sabe a resposta desta pergunta – respondeu o padeiro – Quando há muitos alimentos diferentes sobre a mesa, a primeira Brachá (benção) é sempre feita sobre o pão, que isenta todos os outros alimentos. Porém, no Shabat à noite, a primeira Brachá tem que ser feita sobre o vinho. Para não envergonhar a Chalá, que está esperando sua Brachá, então é preciso cobri-la até depois do término do Kidush.

– Que seus ouvidos escutem o que sua boca está dizendo – falou o Rav Salanter – Você acha que nossos sábios não entendem que um pedaço de massa não tem sentimentos e nunca se envergonha? Entenda uma coisa importante: um dos principais motivos deste costume é tentar nos sensibilizar em relação aos sentimentos das outras pessoas, para que possamos nos esforçar para nunca magoar ou envergonhar o próximo. Sejam os nossos amigos, nossos vizinhos, e acima de tudo as nossas esposas.”

Cada uma das Mitzvót, e até mesmo os costumes instituídos pelos nossos sábios, além de sua implicação espiritual mais profunda, também carregam vários ensinamentos cujo objetivo é nos transformar em pessoas melhores. 
 


Nesta semana lemos a Parashat Chukat, que começa descrevendo uma das Mitzvót mais enigmáticas da Torá: a “Pará Adumá”, a vaca completamente vermelha cujas cinzas eram utilizadas para a purificação de pessoas que haviam se contaminado com alguns tipos de impureza espiritual. Mas o versículo que apresenta esta Mitzvá desperta um grande questionamento, pois está escrito: “Este é o ‘Chok’ (lei) da Torá” (Bamidbar 19:2). Existem centenas de leis na Torá, então por que está escrito que esta é a lei da Torá?

Explicam os nossos sábios que existem dois tipos de Mitzvót: os “Chukim” e os “Mishpatim”. “Chukim” são as Mitzvót cuja lógica não é compreendida pela mente humana, como a Mitzvá de Shaatnez (proibição de utilizar, na mesma roupa, lã e linho). Já “Mishpatim” são as Mitzvót que fazem sentido ao nosso intelecto e conseguimos entender sua lógica, como as Mitzvót de não roubar e não matar. O Rav Chaim ben Atar zt”l (Marrocos, 1696 – Israel, 1743), mais conhecido como Or HaChaim HaKadosh, afirma que a Mitzvá da Pará Adumá é um modelo de “Chok”, por ser completamente ilógica. Ao descrevê-la como sendo a “lei da Torá”, o versículo está nos ensinando que aquele que cumpre um “Chok” como este, apesar de não entender as razões, é considerado como se tivesse cumprido toda a Torá, pois é uma grande demonstração da sua vontade incondicional de cumprir a vontade de D’us. Porém, quando cumprimos uma Mitzvá cujas razões são óbvias, não fica claro se a estamos cumprindo apenas porque faz sentido ou simplesmente pois D’us nos comandou.

Através da Mitzvá da Pará Adumá fica claro o quanto a verdadeira razão por trás de cada Mitzvá está muito além do nosso entendimento. Mesmo Shlomo HaMelech (Rei Salomão), o mais sábio de todos os homens, achou que havia entendido as razões mais profundas de cada uma das Mitzvót da Torá, mas quando chegou na Mitzvá da Pará Adumá, cuja lógica sua mente não conseguiu penetrar, percebeu que não havia entendido as verdadeiras razões de nenhuma das Mitzvót. Este é um dos princípios fundamentais da Torá, de que devemos cumprir a vontade de D’us sem fazer cálculos de acordo com a nossa própria lógica. Mas então por que tantos sábios grandes, como o Rambam zt”l (Maimônides) (Espanha, 1135 – Egito, 1204) e o Sefer HaChinuch, fizeram um esforço enorme para explicar os “Taamim” (razões) das Mitzvót? Como estes sábios tiveram a pretensão de entender as razões das Mitzvót, se nem mesmo a sabedoria de Shlomo HaMelech conseguiu alcançá-las?

A resposta é que nenhum destes sábios teve a pretensão de explorar as razões mais profundas das Mitzvót. O intelecto limitado do ser humano não consegue conceber as verdadeiras razões por trás das Mitzvót, pois este conhecimento pertence somente a D’us. Mas, por outro lado, isto não quer dizer que os “Taamei HaMitzvót”, isto é, as razões mais superficiais descritas pelos nossos sábios, não são verdadeiras. D’us, em Sua infinita sabedoria, fez um arranjo tão perfeito que permite que cada Mitzvá, apesar de sua profundidade, consiga ser percebida de uma maneira específica para cada nível de existência. Portanto, ao estudarmos os “Taamei HaMitzvót”, apesar de não conseguirmos penetrar nos segredos mais profundos de cada Mitzvá, ao menos podemos aprender algo que, para o nosso nível, ajuda em nosso trabalho espiritual aqui neste mundo. Por exemplo, entender os “Taamei HaMitzvót” pode nos ajudar a desenvolver traços de caráter desejáveis e pode nos ajudar a melhorar nossos relacionamentos.

Um exemplo interessante são as Mitzvót relacionadas com os conceitos de “Tahará” (pureza) e “Tumá” (impureza), que são extremamente difíceis de serem entendidas de maneira lógica. Porém, apesar desta impossibilidade de entendimento mais profundo, há benefícios óbvios que podemos usufruir ao cumprirmos estas Mitzvót. Dentre as leis de pureza e impureza, talvez uma das mais relevantes atualmente é a “Taharat HaMishpachá” (leis de pureza familiar, que incluem o afastamento entre o marido e a esposa no período em que a mulher está ritualmente impura). O Talmud (Nidá 31b) explica que é extremamente benéfico para o casal um período mensal de separação física, para que o casamento não caia na falta de entusiasmo na área do relacionamento íntimo. Baseado neste ensinamento do Talmud, o Sefer HaChinuch (Mitzvá 166) escreve que este benefício, de trazer um frescor constante para o casamento, é um dos “Taamim” para a Mitzvá de “Taharat HaMishpachá”. Isto não significa que a razão pela qual devemos cuidar desta Mitzvá é apenas para melhorar o nosso relacionamento marital. Por outro lado, devemos saber que isto não é apenas uma coincidência, pois certamente D’us também intencionou que, no nosso dia-a-dia, a Mitzvá melhorasse nossa vida.

Portanto, apesar de não podermos nos aprofundar nas reais razões de cada Mitzvá, nós podemos entender os “Taamim” delas, que também são verdadeiros para o nosso nível de entendimento. Foi por isso que alguns sábios se esforçaram tanto para entender os “Taamei HaMitzvót”. É verdade que nós devemos cumprir as Mitzvót apenas por D’us ter nos comandado, mas não é suficiente cumpri-las como se fossemos robôs, sem nenhum pensamento ou entendimento do que estamos fazendo. As Mitzvót destinam-se a nos mudar, a nos transformar em pessoas melhores, e a maneira que isto ocorre é justamente através dos “Taamei HaMitzvót”. O Sefer HaChinuch traz, para cada uma das 613 Mitzvót da Torá, a raiz que está por trás dela, justamente para que possamos ter ideia do possível ganho espiritual com o cumprimento de cada Mitzvá, e possamos trabalhar para atingir este objetivo.

Aprender sobre os “Taamei HaMitzvót” não é apenas um exercício benéfico, e sim algo essencial para o nosso relacionamento com D’us. Explica o Rambam que o propósito de todas as Mitzvót é nos trazer mais próximos de D’us e reconhecer que Ele é o nosso Criador. Porém, este processo pelo qual a pessoa se aproxima de D’us através do cumprimento das Mitzvót não ocorre de maneira automática. Se a pessoa cumpre as Mitzvót apenas por hábito, apesar de tecnicamente tê-las cumprido, não as utilizou para alcançar seu objetivo verdadeiro, que é a proximidade com D’us.

Este é o importante ensinamento desta Parashá. A Mitzvá da Pará Adumá nos ensina que estamos obrigados a cumprir as Mitzvót sem questionar sua lógica, mas ao mesmo tempo devemos entender os “Taamei HaMitzvót” para que possamos crescer com cada Mitzvá da maneira planejada por D’us, nos tornando a cada dia pessoas melhores. Mesmo em um nível superficial, conseguimos captar intelectualmente a razão das Mitzvót, e isso nos ajuda a crescer em alguma área na vida. Mas isto não é uma tarefa fácil, pois o Yetzer Hará (má inclinação) sabe o quanto podemos crescer com cada Mitzvá. Por isso ele permite que continuemos cumprindo as Mitzvót, mas nos afasta do entendimento do objetivo e dos benefícios de cada uma delas. A consequência é que cumprimos as Mitzvót de forma mecânica, e não conseguimos sentir o gosto de nos aproximarmos de D’us.

A palavra “Taam” significa “razão”, mas também significa “gosto”. O mais importante da comida não é o gosto, e sim as vitaminas e os nutrientes, que nos sustentam e nos dão energia. Mas o gosto é o que torna a comida atrativa e faz do ato de comer algo prazeroso. Da mesma forma, os “Taamei HaMitzvót” não são as partes mais importantes das Mitzvót, mas são o que as tornam mais gostosas e prazerosas de serem cumpridas.

SHABAT SHALOM                                           

Rav Efraim Birbojm

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