Parte 3: Shabat – O Fundamento da Crença
A essência do homem, segundo a Torá, é que ele foi criado “à semelhança Divina” (Bereshit 1:27). O Criador,por sua vez, Bendito seja, não tem corpo nem aspecto corporal.
Sendo assim, como podemos dizer que o homem foi criado à semelhança Divina?
A resposta se encontra em outro versículo: “E soprou em suas narinas uma alma viva” (Bereshit 2:7). A alma do homem foi criada com o sopro Divino, e o potencial de D’us foi assim passado, em menor escala, ao homem. Portanto, há pontos nos quais o homem se assemelha ao Criador.
Assim como o Criador é perpétuo, a alma também é perpétua (e esse é o fundamento da vida após a morte). A capacidade de livre arbítrio, que pertence somente ao Criador, foi concedida em menor escala também ao homem. O mesmo é válido em relação à capacidade de criar – e daí vem a possibilidade de produzir e criar objetos partindo de simples matéria prima , como foi feito diretamente pelo Criador nos seis dias da Criação.
Por conta desses pontos de semelhança, o homem é considerado como criado “à semelhança Divina”.
Nos seis dias da criação, D’us criou toda a matéria prima necessária para o homem. O objetivo era permitir, com isso, que o homem pudesse exercer sua própria capacidade de criar e assemelhar-se a D’us como produtor e criador de mundos.
Considerando que o homem tem o poder da escolha, ele poderia pensar que todas as suas criações são próprias, esquecendo seu Criador. Com o desenvolvimento da tecnologia e o aumento da capacidade de criação, aumentou também o ateísmo, afastando então as pessoas de sua crença. Para evitar este pensamento confuso, D’us criou o dia do Shabat.
No dia do Shabat, as obras criativas foram proibidas aos judeus. Isso faz com que durante um dia, o judeu não possa exercer sua capacidade de criar, com todos os atos que podem nos levar ao orgulho por podermos dominar a natureza e a criação. Esses atos são chamados “obras”.
Evitando as obras criativas durante um dia da semana – no dia do Shabat – o homem declara que D’us é o criador do mundo. Ele é O Governador, O Criador, e Aquele que criou a matéria prima para que tudo seja criado – e O mesmo que nos mandou evitar tocar em Seu mundo e criar coisas durante um dia da semana. Com isso, ele reconhece como D’us é o verdadeiro Senhor do mundo, por maior que seja a força criativa do próprio homem, e lembra que ele também é nada mais que uma das criações de D’us.
Portanto, apenas a obra criativa foi proibida no Shabat. Uma vez que ela demonstra o reinado do homem sobre a natureza, o homem precisa dar uma pausa em seu “reinado” e coroar D’us, Que lhe concedeu as forças para dominar durante os seis dias de criação da semana.
“Trabalho”, por sua vez, é apenas “fazer um serviço” que precisa ser executado, sem nenhum “reinado” demonstrado na capacidade de transformar a natureza e recriá-la. “Trabalho” é arrumar a casa, desfazer a mesa, etc. – nada que pareça contradizer o Reinado Divino. Portanto, o “trabalho” não profana o Shabat.
É isto que diz o versículo que trata do Shabat: “O sétimo dia é Shabat para O Eterno, seu D’us” (Shemot 20:10). Acaso paramos de trabalhar no Shabat em benefício de D’us? Será que D’us precisa dos nossos atos?
A intenção da Torá, portanto, é a seguinte: o objetivo do Shabat é ligar o homem ao seu Criador e fazer com que o homem O reconheça. Assim, este dia é o “Shabat (que leva o homem) para O Eterno, seu D’us”.
É possível comprovar a veracidade desta explicação sobre a palavra melachá, obra, como malchut, reinado, a partir do texto do kidush de Shabat: “D'us terminou, no sétimo dia, a obra Que realizou e absteu-Se, no sétimo dia, de toda a obra que realizara. D'us abençoou o sétimo dia e o santificou, pois nele absteu-Se de toda a Sua obra”. A obra de D'us chama-se melachá pois Ele criou todo o Universo, governando-o.
É incrível descobrir que D'us deixou somente um dos sete dias da semana para revelar Seu reinado, deixando a maioria dos dias para o homem e suas necessidades, de forma que este possa criar coisas com as quais possa governar a natureza.
A partir disto podemos entender a profundidade dos versículos de parashat Yitrô (Shemot 20:9-11): “Seis dias trabalharás e farás toda a tua obra”. Será que D'us está obrigando o judeu a trabalhar durante os seis dias da semana? Não. D'us está permitindo ao judeu realizar obras e dominar a natureza durante a semana, uma vez que ele tem o Shabat para declarar o reinado de D'us. Ou seja, a licença para criar durante os seis dias da semana está condicionada à abstinência de realizar obras no dia do Shabat. Não fosse este dia, o judeu seria obrigado a sustentar-se somente de comércio e serviços que não envolvem reinado, sendo-lhe proibido criar e ser um báal melachá – artesão.
Assim, portanto, deve ser lido esse versículo: “Seis dias trabalharás e farás toda a tua obra”, com a condição de que “o sétimo dia é Shabat para O Eterno, seu D’us”. Por que, então, é proibido fazer obras durante o Shabat? “Pois durante seis dias D'us fez o céu e a terra, o mar e tudo o que existe neles” – para saber que D'us criou o mundo nesses seis dias.
Para fortalecer as bases da fé, fomos ordenados também a lembrar do Shabat durante todos os dias da semana: “Lembre-se do dia do Shabat, para santificá-lo” (Shemot 20:7). Assim o Ramban explica esse versículo: “A intenção mais simples desse versículo é explicada na “Mechilta”, que há uma ordem de lembrar todo dia do Shabat, para que não seja esquecido ou confundido com os outros dias. Pois, ao lembrar dele constantemente, lembramos da Criação do Mundo a cada instante, e reconhecemos o tempo todo que o mundo possui um Criador, e é Ele que nos ordenou a manter esse sinal, conforme está escrito (Shemot 31:13): 'pois ele (o Shabat) é um sinal entre Eu e vocês'. Este é um grande princípio da fé em D'us…
“Na Mechilta também consta: 'Rabi Yitschak diz: não conte (os dias) como os outros contam, conte-os em prol do Shabat'. A intenção é que os outros povos contam cada dia da semana como independente e dão um nome próprio a cada um, ou em nome dos astros, como fazem os cristãos (como os nomes dos dias da semana em inglês e espanhol, por exemplo – N. do T.). Israel, por sua vez, conta os dias em relação ao Shabat: Primeiro dia do Shabat (rishon beshabat), Segundo dia do Shabat (sheni beshabat), etc., pois isso faz parte da ordem de lembrar sempre dele, a cada dia”.
O Shabat está ligado à raiz mais profunda do judeu – a construção de sua fé interior. O Shabat, que D'us fixou no mundo, é testemunho de Sua Existência.
Aquele que profana o Shabat, portanto, é como alguém nega o testemunho da existência e do reinado do monarca. Uma transgressão dessas – anular o testemunho do poder e do controle real – é extremamente grave.
Ao longo da história judaica, diversos difamadores argumentaram e ainda argumentam que as proibições do Shabat eram relevantes apenas enquanto envolviam muito esforço físico e energia. Eles dizem que acender o fogo, por exemplo, era uma empreitada difícil antigamente. Hoje, porém, basta acender um fósforo, com a maior facilidade!
A resposta a esse tipo de comentário é que as proibições do Shabat não possuem nenhuma relação com o nível de esforço. Existem obras artesanais consideradas “fáceis”, como costurar e escrever – e são proibidas no Shabat. Por outro lado, o esforço é permitido no Shabat em determinados casos: correr para a sinagoga para rezar com toda a congregação ou subir as escadas com engradados de bebida para a refeição de Shabat, por exemplo, apesar do desgaste físico e a dificuldade que trabalhos como esses envolvem.
O objetivo das proibições de Shabat é interromper o trabalho criativo, não o esforço físico. Acender um fósforo, portanto, é proibido, por mais fácil que seja essa criação de fogo. Com isso, anunciamos que apenas D'us, não o homem, domina realmente a natureza.
A análise do versículo seguinte comprova esta interpretação: “Pois durante seis dias D'us fez o céu e a terra, o mar e tudo o que neles existe, e descansou no sétimo dia” (Shemot 20:10). Em geral, uma pessoa descansa de algo pelo qual teve de fazer esforço. Como, portanto, é possível falar de “descanso” em relação a D'us? É impossível relacionar a Ele qualquer tipo de esforço! Conforme consta: “Eis que você sabe, se não ouviu, que D'us é O Mestre do mundo, que cria os cantos da terra, não ficará cansado e não se esforçará, e não há limite para Seu discernimento” (Isaías 40:28).
Analisando bem as fontes, porém, é possível perceber que a palavra “descansar”, em hebraico, significa também parar de falar. Por exemplo: “Disseram todas essas palavras a Naval e descansaram” (I Samuel 25:9). “Descansar”, portanto, equivale também a “parar de falar”.
D'us criou o mundo com a fala, conforme diz a Mishná (Pirkê Avot 5:1): “Com dez discursos foi criado o mundo”. Apenas “falar” certamente não envolve esforço, e foi disso que D'us “descansou”. Da mesma forma, fomos ordenados a parar de fazer, no Shabat, toda obra criativa, por mais que não envolva nenhum esforço.
Assim, a intenção da Torá ao dizer “pois nele (D'us) descansou de toda a sua obra” é dizer que D'us parou de criar com a fala, sem nenhum esforço. Também o termo “shavat“, utilizado nesse versículo em hebraico, refere-se a parar de falar, conforme consta no livro de Jó: “E pararam (vaishbetu) aqueles três homens de resonder para Jó” (Jó 32:11).
Portanto, a base das proibições de Shabat não é evitar o cansaço físico; é parar a obra criativa mesmo quando essa não exige nenhum esforço.
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