Passo a passo

“Dayse, uma senhora de 92 anos, delicada e bem vestida, com o cabelo bem penteado e um semblante calmo, precisou se mudar para uma casa de repouso. Seu marido havia falecido recentemente e a mudança se tornou necessária, pois ela era deficiente e não havia quem pudesse cuidar dela em casa. Uma neta dedicada a acompanhou na mudança para a casa de repouso. Após algum tempo aguardando na sala de espera, uma enfermeira veio avisa-las que o quarto estava pronto. Enquanto caminhavam lentamente até o  elevador, a neta, que já havia vistoriado o aposento, fez uma descrição do pequeno quarto, incluindo as flores na cortina da janela. A senhora sorriu docemente e disse com entusiasmo:
 
– Eu adorei!
 
– Mas a senhora nem viu o quarto – observou a enfermeira.
 
Abrindo um sorriso, a senhora explicou:
 
– A felicidade é algo que você decide. Se eu vou gostar do meu quarto ou não, isso não depende de como os móveis estão organizados, e sim como eu os organizo na minha cabeça. Eu já decidi gostar dele. É uma decisão que eu tomo a cada manhã quando eu acordo. Todos os dias eu tenho uma escolha: posso passar o dia na cama, reclamando das dificuldades que eu tenho com as partes do meu corpo que já não funcionam, ou posso sair da cama e ser grata por mais um dia de vida. Por isso eu escolho levantar e ser grata, e tento aproveitar cada dia da melhor maneira possível”.
 
São justamente os pequenos momentos e as pequenas decisões que podem fazer muita diferença em nossas vidas. 
 


Na Parashat desta semana, Vayelech, Moshé relembrou ao povo que seus dias como líder estavam terminando, e já começou a passar para Yoshua, seu aluno, o cargo de liderança. E na próxima terça feira de noite (22 de setembro) começa Yom Kipur, um dos dias mais sagrados e especiais do ano. Yom Kipur também é conhecido como o “Dia do Perdão”, pois foi neste dia que D'us perdoou o povo judeu pela terrível transgressão do bezerro de ouro, e neste dia D'us também nos perdoa, caso estejamos sinceramente arrependidos, das transgressões que fizemos durante o ano.
 
Quando pensamos em arrependimento, automaticamente associamos com os erros relacionados ao cumprimento das Mitzvót. Tentamos nos lembrar das Mitzvót que deveríamos ter nos esforçado mais e das transgressões que deveríamos ter evitado. Porém, esquecemos que também devemos nos questionar muito em relação a outro aspecto da nossa espiritualidade que normalmente passa completamente despercebido, mas que também é vital em nosso desenvolvimento espiritual e, portanto, precisa de um profundo processo de avaliação.
 
Este aspecto fica mais claro em uma das rezas que fazemos nos “Asseret Iemei Teshuvá” (10 dias de arrependimento, que vão desde Rosh Hashaná até Yom Kipur), na qual afirmamos que o homem é julgado “Maassê Ish Upekudatô”. “Maassê Ish” se refere aos atos da pessoa, isto é, como ele se cuidou em relação ao cumprimento das Mitzvót. Já “Pekudatô” se refere à tarefa específica da pessoa, isto é, o propósito de cada um neste mundo. Cada indivíduo vem ao mundo com um trabalho específico para cumprir, e ele é julgado de acordo com o quanto se esforçou para alcançar seu objetivo. Isto quer dizer que, mesmo que uma pessoa possa ter cumprido todas as Mitzvót, ainda assim ela pode não ter atingido seu potencial. Por isso este aspecto da nossa espiritualidade também deve ser tão questionado nas nossas reflexões de Yom Kipur quanto o nosso cumprimento das Mitzvót.
 
Quando Avraham foi, a pedido de D'us, sacrificar seu filho Ytzchak, e já estava com a faca na mão prestes a realizar o sacrifício, um anjo chamou-o: “Avraham, Avraham” (Bereshit 22:11). Por que esta repetição? Explica o Rav Yssochor Frand que existem duas imagens de cada pessoa: uma é a sua imagem material, a outra é a sua imagem espiritual. A imagem material é a imagem criada pela pessoa através dos seus atos neste mundo, enquanto a imagem espiritual é a imagem que representa o que a pessoa pode se tornar caso cumpra, de maneira completa, seu potencial. Quando Avraham se mostrou disposto a sacrificar seu próprio filho a pedido de D'us, ele passou o último dos seus 10 testes e atingiu seu potencial completo. Neste momento suas duas imagens, a material e a espiritual, se tornaram idênticas.
 
O Rav Yehonasan Gefen ressalta que é um pouco assustador pensar que se Avraham não tivesse vencido mais este teste na vida, ele não teria atingido seu potencial. Naquele momento suas conquistas já eram inigualáveis a qualquer outro ser humano. Ele já havia conseguido criar fundações sólidas do monoteísmo, mesmo estando imerso em uma sociedade idólatra. Já havia se sobressaído na característica de Chessed e já havia vencido nove testes muito difíceis. Apesar disso, se Avraham não tivesse passado seu teste final, nunca teria alcançado a perfeição do seu objetivo no mundo. Isso nos dá uma pequena noção do que é esperado de cada pessoa em termos do cumprimento do seu objetivo de vida.
 
A importância de focarmos no nosso objetivo de vida é ressaltada no Maftir (leitura feita após a Torá) de Minchá de Yom Kipur, quando lemos o “Sefer Yoná”. Este livro do Tanach descreve a vida do profeta Yoná, cuja missão era advertir o povo de Nínive, uma gigantesca cidade de idólatras, de que D'us os destruiria por causa de suas transgressões. Porém, ao invés de cumprir o que D'us havia lhe ordenado, Yoná tentou fugir em um barco. D'us mandou uma tempestade e fez com que Yoná fosse jogado ao mar, acabasse sendo engolido por uma baleia e fosse cuspido em terra firme. Neste momento Yoná entendeu que não havia como fugir de sua missão e foi cumpri-la. Por que o Sefer Yoná é lido em Yom Kipur? Para nos ensinar que não podemos fugir do nosso objetivo na vida, e parte importante da nossa Teshuvá de Yom Kipur deve ser em relação às nossas metas. O Chafetz Chaim zt”l (Bielorússia, 1838 – Polônia, 1933) explica que quando uma alma necessita fazer algum conserto no mundo para atingir seu objetivo, D'us faz tudo o que é necessário para que esta alma consiga chegar à perfeição, mesmo que para isso tenha que trazê-la de volta para o Olam Hazé (mundo material) diversas vezes, em diferentes encarnações. A história de Yoná nos ensina, justamente em Yom Kipur, que não podemos fugir de nossa missão na vida, pois D'us nos colocará inevitavelmente de volta ao mesmo caminho, para que possamos terminar de consertar o que falta.
 
Todos nós temos uma tarefa para cumprir no mundo, algo particular que se aplica apenas a cada um de nós. E muitas vezes temos a tendência de fugir da nossa tarefa. Talvez porque parece ser muito difícil e sentimos que não podemos completá-la, ou talvez porque fugimos de compromissos e responsabilidades. Mas o Sefer Yoná nos recorda que não há como fugir de D'us. Ao invés de ter que passar novamente pelos processos dolorosos de reencarnação, devemos nos esforçar nesta vida para completarmos o que viemos fazer aqui.
 
Outro detalhe interessante que está relacionado ao conceito da nossa missão na vida aparece na Tefilá de Neilá, a última Tefilá de Yom Kipur. Estranhamente nesta Tefilá não fazemos o “Vidui Hagadol” (texto da confissão dos nossos erros, que inclui o “Al Chet”). Então onde expressamos nosso sentimento de Teshuvá nesta Tefilá tão importante, que fecha os Asseret Iemei Teshuvá? Explica o Rav Yitzchak Meir Rotenberg zt”l (Polônia, 1799 – 1866), mais conhecido como Chidushei Harim, que nosso sentimento de Teshuvá se expressa através da frase “para que possamos impedir nossas mãos de roubar”, que falamos no final da Amidá de Neilá. Mas por que é enfatizada apenas a transgressão de roubo, entre tantos erros que fizemos durante o ano?
 
Responde o Chidushei Harim que, na realidade, esta declaração não se refere ao roubo convencional, pois isto já foi repetidamente mencionado nas diversas confissões que pronunciamos durante Yom Kipur. Este roubo se refere a outro grande arrependimento que devemos sentir em Yom Kipur. D'us dá a cada um de nós muitos presentes, dinheiro, comida, moradia, talentos e oportunidades. Tudo isto é dado com a intenção de nos ajudar a cumprir nosso papel no mundo. Mas o que nós fazemos? Utilizamos estes presentes de maneira equivocada, para outros objetivos, em geral para o nosso próprio benefício. Isto é considerado um roubo, pois estamos recebendo algo que foi dado para um propósito e utilizando para outro propósito. Nos momentos finais de Yom Kipur, no clímax do “dia do perdão”, quando nós esperamos já ter limpado as nossas transgressões após um dia inteiro de jejum e rezas vindas do fundo do nosso coração, nós também nos arrependemos por termos utilizado os talentos e presentes de D'us de maneira equivocada, e expressamos nossa intenção de, neste novo ano, fazer o nosso máximo para utilizar o que D'us nos dá para atingirmos o nosso potencial.
 
Porém, apesar de termos que nos preocupar e refletir sobre a nossa missão neste mundo, devemos lembrar que nenhuma missão normalmente é atingida através de atos heroicos grandiosos, e sim através de pequenas vitórias diárias. Cada pequena escolha que fazemos, cada reflexão para vivermos uma vida significativa, cada ajuda que damos aos outros, tudo isto faz parte da construção do nosso objetivo. D'us nos encaminha para a nossa missão através dos testes cotidianos, através de oportunidades que vão surgindo. É importante estar sempre atento, sempre buscando aproveitar as oportunidades. A cada teste de Avraham, ele estava apenas vivendo mais um dia de sua vida, aprendendo a lidar com as dificuldades, mas ao mesmo tempo estava chegando à perfeição. Normalmente quando passamos por uma dificuldade nós reclamamos com D'us, justamente por não percebermos que esta dificuldade nos foi mandada “sob medida”, junto com as nossas ferramentas e habilidades, para que possamos atingir nosso objetivo particular.
 
É muito importante em Yom Kipur nos arrependermos pelos erros que cometemos em relação às Mitzvót, mas é ainda mais importante o arrependimento por todas as oportunidades perdidas durante o ano. E deste arrependimento certamente virá a força para, neste ano que agora se inicia, conseguirmos aproveitar cada oportunidade para preencher o nosso verdadeiro potencial.
 
SHABAT SHALOM e GMAR CHATIMÁ TOVÁ

Rav Efraim Birbojm

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