Parashat BereshitRav Efraim Birbojm

Sentindo a dor da distância – Parashat Bereshit

“Certa vez Avraham, um rapaz judeu, foi acompanhar seu amigo Boris, que não era judeu, a um restaurante. Avraham não era muito religioso, mas como a comida não era Kasher, ele preferiu não comer nada. Boris não se incomodou com as restrições alimentares do amigo e logo e pediu um leitão. Quando o leitão chegou à mesa, Avraham teve vontade de comer ao ver Boris se deliciando, mas conseguiu controlar seus desejos.

No final do jantar, um pedaço do leitão havia sobrado. Boris se virou para Avraham e perguntou:

– Você não quer provar mesmo? Está uma delicia!

– Apesar de parecer suculento e delicioso, D’us não me permite – explicou Avraham.

– E se alguém te obrigasse a comer? – perguntou Boris.

– Se fosse um risco de vida, então de acordo com a Halachá seria permitido comer – explicou pacientemente Avraham.

Ao escutar isso, Boris puxou da cintura uma arma, apontou para Avraham e gritou:

– Coma agora este leitão ou eu te mato!

Avraham, ao ver a arma apontada em sua direção, começou a tremer. Ele pegou o garfo, espetou um pedaço do leitão e começou a comer. Após Avraham engolir alguns pedaços, Boris guardou a arma, começou a dar risada, deu um tapinha nas costas de Avraham e disse:

– Amigo, desculpe pela brincadeira. Você sabe que eu nunca mataria você. Queria só ver o que aconteceria se você comece o leitão. Você não ficou bravo comigo por isso, ficou?

– Óbvio que eu fiquei! – disse Avraham, com o rosto vermelho de raiva – Da próxima vez que for fazer isso, faça enquanto a carne do leitão ainda estiver quentinha, não depois de já ter esfriado…”

Apesar da piada, uma dos maiores sinais de queda espiritual é quando alguém faz algo errado e, ao invés de sentir tristeza, sente alegria. É um sinal de que a pessoa não se importa de se afastar de D’us.


Nesta semana recomeçamos o ciclo anual de leitura da Torá, com o Sefer Bereshit, também conhecido como “Sefer HaYetsirá” (o Livro da Criação), que descreve tanto a criação física do mundo quanto a sua criação espiritual, em especial através dos três grandes pilares que sustentam o mundo: Avraham, Ytzchak e Yaacov.

Na Parashá Bereshit (literalmente “no princípio”), a Torá nos conta sobre a criação do primeiro homem, Adam Harishon, e da primeira mulher, Chavá. Eles tiveram dois filhos, Cain e Hevel, enquanto ainda estavam no Gan Eden, mas logo eles transgrediram ao comer do fruto do conhecimento do bem e do mal e acabaram sendo expulsos. A vida, que poderia ser fácil, tornou-se pesada e difícil. O ser humano passou a ser mortal e teria, daquele momento em diante, dificuldades com seu sustento.

A Torá então começa a descrever a vida fora do Gan Éden. Cain foi se dedicar aos trabalhos da terra, enquanto Hevel se dedicou à criação de animais. Porém, há um detalhe que nos chama a atenção no versículo no qual a Torá descreve os trabalhos de Cain e Hevel: “E era Hevel pastor de rebanhos, e Cain era lavrador da terra” (Bereshit 4:2). A linguagem utilizada para descrever a profissão de Hevel é “Vaiehi” (E era), enquanto a linguagem utilizada para descrever a profissão de Cain é “Haia” (era). Aparentemente não há muita diferença entre as duas linguagens. Porém, nossos sábios ensinam que “Vaiehi” é uma linguagem utilizada pela Torá quando há algum sofrimento envolvido, enquanto “Haia” é uma linguagem utilizada quando há alegria envolvida. Isso significa que a profissão de Cain estava associada a alguma alegria, enquanto a profissão de Hevel estava associada a alguma tristeza. O que este detalhe no versículo nos ensina?

Explica o Rav Yaakov Yitzchak Galinsky zt”l (Polônia, 1920 – Israel, 2014) que quando Adam Harishon e sua família estavam no Gan Éden, eles podiam ter uma vida espiritual. Eles não precisavam se esforçar para conseguir suas necessidades mundanas. Eles eram servidos por anjos e não tinham preocupações materiais. Desta maneira, eles podiam dedicar todos os seus esforços e pensamentos ao seu crescimento espiritual. Porém, após a transgressão de Adam e Chavá, eles foram expulsos desta vida paradisíaca e despencaram para uma vida mundana, cheia de preocupações e dificuldades, na qual o sustento vinha através do esforço físico, não sobrando mais tanto tempo para se dedicar à espiritualidade.

Quando Hevel percebeu que já não poderia mais se dedicar integralmente ao seu crescimento espiritual, ele ficou arrasado. Ele queria estar mais próximo de D’us e, por isso, sofreu muito com a queda espiritual da humanidade. É por isso que, para ele, a ocupação mundana trouxe sofrimento. Já Cain ficou feliz com sua queda espiritual. Já não havia em suas costas o “jugo” do crescimento espiritual, ele estava livre para se dedicar ao mundo material, a juntar riquezas e buscar prazeres. Talvez isso explique o motivo pelo qual Cain e Hevel fizeram oferendas para D’us, mas enquanto Hevel ofereceu o melhor dos seus animais, Cain ofereceu apenas os restos de suas plantações, já que era apegado ao mundo material e não queria abrir mão do material em prol do espiritual.

Este mesmo conceito também é transmitido pelo Talmud (Avoda Zará 3a), que traz um diálogo que ocorrerá entre os povos do mundo e D’us durante a Era Messiânica, quando D’us recompensará todas as pessoas que fizeram bons atos. Os povos então dirão diante de D’us: “Mestre do Universo, nos dê uma Mitzvá e a cumpriremos”. D’us responderá a eles: “Tolos! Quem trabalhou duro na véspera do Shabat comerá no Shabat. Mas quem não trabalhou duro na véspera do Shabat, de onde comerá no Shabat?”. O Talmud está nos ensinando que apenas quem fez Mitzvót antes da vinda do Mashiach será recompensado, pois quando D’us se revelar e todos verem claramente a honra e a satisfação que terão os Tzadikim por terem cumprido as Mitzvót, e o quão grande será o castigo dos perversos, fazer então as Mitzvót já não será mais um teste e, portanto, não haverá mais motivos para recompensas.

O Talmud continua e diz que, mesmo assim, por misericórdia, D’us dará aos povos do mundo uma Mitzvá leve, chamada Sucá. Imediatamente cada um montará uma Sucá sobre seu teto. D’us então fará o sol forte arder sobre eles, como na época quente de Tamuz. O resultado é que cada um chutará sua Sucá e sairá dela. Por causa deste comportamento, eles não terão direito a receber nenhuma recompensa. Porém, o próprio Talmud questiona: “Mas foi ensinado que aquele que está sofrendo está isento de cumprir a Mitzvá de Sucá!”. Por exemplo, quando estamos comendo na Sucá e começa a chover, podemos terminar a refeição fora da Sucá, já que é extremamente inconveniente comer com pingos de chuva caindo sobre nós e sobre a comida. Então, por que os povos não serão recompensados por terem abandonado a Sucá, se este é o comportamento correto de acordo com a Halachá no caso de um dia muito quente e desconfortável? Responde o Talmud: “Mesmo que a pessoa está isenta, mas chutar, quem chuta?”. Portanto, o problema não é terem saído da Sucá por estarem incomodados com o calor. O problema é que deveriam ter saído cabisbaixos, tristes por não terem cumprido a Mitzvá, por terem perdido uma oportunidade espiritual, e não dando chutes e desprezando a Mitzvá.
 
Outro exemplo incrível é trazido pelo Talmud (Chaguiga 15a), em relação a Elisha ben Abuia, mais conhecido como “Acher”, um grande erudito de Torá da época da Mishná. O Talmud traz diversos motivos que o levaram a tropeçar e se tornar um herege. Elisha ben Abuia então escutou uma Voz Celestial que anunciava: “Voltem (em arrependimento), filhos rebeldes, com exceção de Acḥer”. Ao ouvir isso, Elisha ben Abuia pensou: “Já que eu fui banido do Mundo Vindouro, deixe-me sair e desfrutar deste mundo”. O Talmud nos conta que, depois deste episódio, “Acher se desviou”. Ele começou a procurar os prazeres mundanos mais baixos e degradantes. Mas por que Elisha ben Abuia foi cobrado pelo seu envolvimento com o mundo material? O que ele deveria ter feito, já que havia escutado uma Voz Celestial anunciando que não havia mais chance de arrependimento para ele? A resposta é que aquela Voz Celestial era apenas um teste. Ao escutar que havia perdido o seu potencial espiritual, ele deveria ter sentido dor, ao invés de ter se alegrado e pensado “agora que estou livre da minha carga espiritual, posso aproveitar os prazeres do mundo material”.
 
Esta é a regra: devemos desejar ter uma conexão máxima com D’us em todos os momentos. E, mesmo quando isso não for possível, devemos nos sentir incomodados por não estarmos no nível que poderíamos. Em nossas realizações espirituais, devemos sempre querer mais e nos esforçar para chegar ao topo. Tropeços acontecem, e devemos nos lamentar pelas oportunidades perdidas. Somente aqueles que se esforçam,e que sentem a dor de ainda estarem distantes de D’us, conseguirão alcançar seu máximo crescimento espiritual. 

SHABAT SHALOM

R’ Efraim Birbojm

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